segunda-feira, março 05, 2012

ONDE ESTÁ O VERBETE "BOM-SENSO"? - REVISTA VEJA


REVISTA VEJA

O dicionário Houaiss, o maior do país, está na mira da patrulha politicamente correta, que acredita lutar contra o preconceito apagando palavras e definições

Luís GUILHERME BARRUCHO 

Dicionário, diz o Aurélio, é o "conjunto de vocábulos duma língua ou de termos próprios duma ciência ou arte, dispos­tos, em geral, alfabeticamente, e com o respectivo significado". Dicionário é o celeiro do idioma, o banco central da linguagem formado por palavras com­piladas segundo um único critério, o de estarem em uso ou terem sido usa­das no passado. Censurar ou podar pa­lavras dos dicionários é uma estupidez que se equipara à loucura de rasgar di­nheiro por ser contra o capitalismo ou ao desatino de queimar florestas nati­vas para matar serpentes venenosas. Pois foi exatamente isso que o procu­rador da República Cleber Eustáquio Neves, do Ministério Público Federal de Uberlândia, em Minas Gerais, ten­tou ao ajuizar uma ação civil pública pedindo a remoção das livrarias do di­cionário Houaiss, o mais completo do país, com 228500 verbetes, publicado pela editora Objetiva.

Neves deu guarida a um pedido bi­zarro feito em 2009 por uma pessoa que sustentava que duas definições da pala­vra "cigano", mesmo que devidamente registradas no dicionário como sendo de uso pejorativo, são ofensivas à etnia e de­vem ser banidas. Enquanto isso não fos­se feito e novas edições devidamente "higienizadas" do dicionário não fossem produzidas, o Houaiss deveria ser retirado das livrarias, e sua venda, proibida. O Houaiss registra que, pejorativamente. cigano é "aquele que trapaceia; velhaco. burlador" e "aquele que faz barganha que é apegado ao dinheiro; agiota, sovi­na". Pode incorrer em preconceito quem utiliza a palavra cigano nas acepções aci­ma, mas incorre em um desvio muito pior quem propõe censurar esses regis­tros por seu potencial ofensivo. Empo­brecer o idioma é um dos instintos auto­máticos das mentes totalitárias. No livro 1984, de George Orwell, um Ministério da Verdade se dedica justamente à su­pressão das palavras consideradas inade­quadas pelos ditadores e à sua substitui­ção por termos novos criados justamente para suprimir a verdade.

"Quem pede a suspensão de uma obra por ela conter um termo considera­do discriminatório está assassinando a cultura brasileira, que a cada dia é torpe­deada por novas empreitadas da patrulha do politicamente correto", diz o imortal Evanildo Bechara, membro da comissão de lexicógrafos - como são chamados os fazedores de dicionários - da Acade­mia Brasileira de Letras. Os dicionários de outras editoras, a Melhoramentos e a Globo, há dez anos suprimiram a infor­mação de que a palavra "cigano" foi usa­da no passado com sentido pejorativo. Diz Breno Lemer, superintendente da Melhoramentos, responsável pelo dicio­nário Michaelis, que é contra a interven­ção do procurador: "À medida que a so­ciedade se toma mais politicamente cor­reta, cabe ao dicionário retratar isso com o maior rigor possível. É como a fotogra­fia de uma paisagem - se a paisagem muda, é nosso dever fazer um novo re­trato, com a maior exatidão".

Nos tempos da KGB, polícia política da ditadura soviética, quando um políti­co ou uma celebridade caía em desgraça com a liderança do partido comunista, sua figura era simplesmente apagada das fotografias antigas, uma flagrante falsifi­cação da história. A hierarquia católica, em momentos de puritanismo exacerba­do, mandou cobrir as partes pudendas dos anjos e de outras figuras mostradas em majestosa nudez por mestres da pin­tura. Entre os censurados pelos prelados em guerra com os pelados esteve o gran­de Michelangelo. É saudável, portanto, reprimir a tentação de servir ao gosto presente simplesmente suprimindo e es- . condendo imagens, palavras ou dados que foram aceitáveis no passado a ponto de serem registrados para o desfrute das gerações vindouras.

O diretor-geral da Objetiva, que edi­ta o Houaiss, Roberto Feith, não con­corda com a tese de que a maneira de se alUaliz:lr passe pelu higlt;nlzaçao do conteúdo dos dicionários e de outras obras literárias ou culturais. Os diciona­ristas do Houaiss merendem refllHir 119 mudanças na paisagem mencionadas pur Breno Lemer, n:ão ~uprimindo dé1­dos do passado, mas acrescentandu in­formações relevantes para o presente. No caso de "cigano", as próximas edi­ções vão informar que as definições ofensivas "resultam de antiga tradição europeia, pejorativa e xenófoba". A ten­tação de reescrever o passado é resis­tente. Há mais de dez anos, outra ação contra o Houaiss tentou apagar a defini­ção pejorativa de judeu como "pessoa usurária, avarenta". Sem sucesso. Em 2010, o Conselho Nacional de Educa­ção condenou a obra de Monteiro Loba­to, o maior autor infantil brasileiro, por ela dar vazão ao racismo.

Concebido para facilitar a comuni­cação entre pessoas que falavam línguas diferentes, o primeiro dicionário de que se tem notícia é o Elya, do século III a.c., com 2094 palavras. No Brasil, o pioneiro foi o do carioca Antonio de Moraes Silva, em 1789, o Diccionario da Lingua POrlugueza, baseado em uma obra publicada em Portugal pelo padre inglês Rafael Blureau. Os dicio­nários costumam ser revistos por equi­pes de lexicógrafos a cada cinco ou dez anoS, quando se montam novas edições que incluem palavras incorporadas ao idioma (exemplos no novo Houaiss: "blogosfera", "tubaína", "blogar", "pi­taco", "empoderamento"). Resume o acadêmico Bechara: "O dicionário tem a função de ser o espelho vivo da lín­gua, o repertório da memória cultural e histórica do idioma". 

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