quinta-feira, fevereiro 23, 2012
Não, a culpa não é do mercado - CARLOS ALBERTO SARDENBERG
O Globo - 23/02/12
O mercado, os banqueiros e a União Europeia, com suas exigências de austeridade, são os culpados pelas desgraças da Grécia - tal é o entendimento que se espalha, como se fosse fato conhecido e indiscutível. Mas quais teriam sido os responsáveis pela boa vida dos gregos até a crise global de 2008/09? Se perguntarem aos manifestantes nas ruas de Atenas, eles dirão que tudo ia bem até que a crise financeira estragou tudo.
Eles têm razão num ponto - a vida de fato estava melhorando. Em 2001, por exemplo, o salário mínimo era de 5.300 euros. Em 2009, já havia alcançado 8.400 e, em 2010, já no auge da crise ainda subiu mais um pouco, para 8.600 euros. O ganho na década foi de 62%, em valores nominais. Mas a inflação no período correu na casa dos 3,5% ao ano - nível de euro - de modo que o ganho real foi expressivo.
Os salários reais na Grécia cresceram 22% naquele mesmo período. O PIB per capita saiu da casa dos US$ 20 mil dólares/ano para os 30 mil, nível de país quase desenvolvido (o Brasil, por exemplo, de renda média, tem cerca de US$ 12 mil).
Finalmente, do início do século até a eclosão da crise, a Grécia cresceu, na média, 4% ao ano.
Qual foi a causa próxima? A adesão à moeda comum, o euro, em 2001. A taxa de juros caiu rápida e fortemente, barateando o financiamento para investimentos e consumo. Crédito barato, eis o nome da coisa.
Mais que isso, a adesão ao euro foi a cereja do bolo. A Grécia aderiu à União Europeia em 1981. Era um país pobre. Enriqueceu, em boa parte por conta dos europeus mais ricos. Nessas três décadas, a Grécia recebeu uma ajuda anual da UE - na forma de financiamentos subsidiados e investimentos a fundo perdido - equivalente a pouco mais de 3% do PIB ao ano. Sempre esteve entre as nações mais favorecidas pelo sistema de transferência de renda da comunidade europeia. (Hoje, os gregos reclamam da interferência do governo europeu. Antes, apreciavam.) E cerca de 15% da economia grega vinham direto dos turistas, sobretudo da Europa.
Além disso, a Grécia sediou a Olimpíada de 2004, o que exigiu pesados investimentos em infraestrutura. Foi uma festa. E o começo da desgraça. Gastos mal feitos, obras equivocadas (instalações inúteis depois dos Jogos), atrasos e corrupção, muito dinheiro público torrado com pouca eficiência, tudo isso deixou uma herança maldita. (Atenção, Brasil.)
Não se pode dizer que a enorme dívida pública grega veio da Olimpíada. Buracos desse tamanho se constroem ao longo de muitos e muitos anos. Mas foi um sinal - os Jogos de 2004 pareciam colocar a Grécia de volta ao lugar que ocupara no passado. Foram mais uma semente da tragédia.
O que mais eles fizeram de errado? Primeiro, gastaram por conta, sem se preocupar, por exemplo, com a expansão dos investimentos. Depois, o governo, também enriquecido pelos ganhos de arrecadação, contratou muito mais gente do que precisava e foi generoso nos salários e nas aposentadorias. Amplos setores sociais foram legal e ilegalmente beneficiados.
Os armadores, por exemplo, responsáveis por mais de 6% de economia grega, estavam isentos de impostos. Diversas categorias profissionais também estavam dispensadas desse aborrecimento. E a Receita fazia vistas grossas para muitos outros. E, finalmente, o Estado manteve o controle de 40% da economia - com a ineficiência e a corrupção das entidades estatais, e o costumeiro viés favorável aos funcionários de mais alto nível.
Sim, os bancos emprestaram irresponsavelmente para o governo grego, sabe-se agora. Mas se tratava de um país associado ao euro, moeda que tinha a garantia da Alemanha e da França, não tinha? (Aliás, o novo pacote de ajuda à Grécia confirma que havia essa garantia, não é mesmo?) Além disso, o governo grego falsificou seus números e conseguiu enganar muita gente durante muito tempo.
Diz-se hoje que a Grécia, depois de dois anos de austeridade imposta pelo mercado, pelos banqueiros, pela União Europeia e pelo FMI, só piorou, o que demonstraria que a receita não presta. Entretanto, mesmo depois de receber o primeiro pacote de ajuda, o governo não cumpriu o programa prometido.
Não, a culpa não é dos mercados e de seus associados. Se estavam todos no mesmo mercado e se os países sofreram a crise de modo diferente, a explicação para essas diferenças está em casa.
E não esqueçam. O chamado mercado, o sistema capitalista global, propiciou nada menos que três décadas de expansão. Muitos países perderam a chance, outros aproveitaram. A Grécia aproveitou muito. Muito.
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