REVISTA ÉPOCA
Numa hora em que tantas pessoas prestam atenção na blogueira cubana Yaoni Sanchez, também é muito relevante discutir o SOPA e o PIPA.
São situações parecidas mas, estranhamente, nem todos se comovem da mesma forma, como se não tivessem percebido ou não quisessem perceber que se trata do mesmo problema, numa escala muito mais grave e ameaçadora.
A repressão sofrida pela blogueira é injusta e merece repúdio. Mas o SOPA e o PIPA representam uma ameaça concreta à liberdade em países que se orgulham de garantir direitos democráticos a seus cidadãos, coisa que o regime dos irmãos Castro nunca disse que pretendia fazer depois que tomou o poder, em 1959.
Os projetos de controle da internet representam um risco grave e imediato. Isso ficou claro ontem, nos protestos que envolveram diversos sites no mundo inteiro.
O efeito não tardou. Pelo menos 18 senadores americanos já retiraram seu apoio ao projeto. O risco dele ser aprovado não acabou mas tornou-se menor. Barack Obama já disse que não irá assinar nenhuma lei que implique em criar censura na internet.
Em sua coluna de hoje, em O Globo, Cora Ronai explica: se os projetos de lei em discussão no Congresso americano forem aprovados, “a rede com que colaboramos e que se formou graças ao conteúdo produzido e compartilhado por nós mesmos se transformaria numa estufa censurada, onde só se encontraria o que passasse pelo crivo da industria americana.”
Outro autor que compara o SOPA à uma censura é Ethevaldo Siqueira, colunista especializado em tecnologia do Estadão e insuspeito de qualquer antipatia por empresas privadas.
Ele recorda que, caso o SOPA venha ser aprovado, poderá “se transformar em péssimo exemplo dos EUA para o mundo, inspirando muitos países a adotar formas semelhantes “de censura, de repressão e bloqueio de sites, hoje só praticadas pela China, Irã, Coréia do Norte, Cuba e poucos outros países.”
Traduzindo: longe de ser um risco apenas para o cidadão americano, essas leis ameaçam o espaço de comunicação e cidadania que a internet ajudou a criar ao longo de 20 anos. Considerando o domínio americano nas inovações tecnológicas — há uma década o New York Times definiu a internet como uma colonia dos EUA — não há dúvida que toda medida tomada em Washington terá reflexos imediatos no mundo inteiro.
Não estamos falando de países periféricos nem fechados. Mas do maior PIB mundial, com um imenso poder de retaliação e capacidade de impor interesses. Uma das forças por trás dos leis em debate é o cinema americano, que retira uma fatia enorme de suas receitas do mercado externo. Outra força é a industria de comunicações, que faz movimentos na mesma direção.
O que está em questão é a natureza profunda da Internet.
Se há algo de revolucionário na Internet, o SOPA e o PIPA representam Termidor, a reação conservadora, que pretende restaurar uma ordem que deixou de fazer sentido neste universo.
Criada por cientistas que procuravam um espaço para facilitar o avanço do conhecimento, sendo muito utilizada por militares nos primeiros anos, a internet não é um produto de empresas privadas nem nasceu sob a lógica do lucro. É obra de millhões de cidadãos que todos os dias acessam sites, trocam mensagens, defendem idéias.
Nasceu sob a lógica dos espaços públicos e continua assim.
Nos primórdios, recebeu uma imensa carga de recursos do Estado americano, graças a visão de Al Gore, o vice de Bill Clinton que enxergou muita coisa à frente do titular.
O resultado é que a internet serve a economia de mercado — e como! — mas não se confunde com ela. É muito maior. Tem outra natureza.
Nem tudo que ali circula é mercadoria, o que tem vantagens e desvantagens. Começando pela desvantagem: seu trabalho pode ser divulgado, expropriado e até falsificado e você não vai receber nada por isso. Outra desvantagem: dificilmente poderá se defender mesmo que sofra uma acusação injusta. E terá de contar com advogados caros e competentes se quiser impedir a divulgação de uma informação que possa prejudicá-lo no YOUTUBE.
Concluindo pela vantagem: num mundo definido como sociedade da informação e do conhecimento, a internet cumpre um papel indispensável pelo seu caráter universal, aberto e descontrolado. Sem querer abusar de uma palavra que às vezes parece tão gasta, ajudou o mundo a se tornar mais democrático. Para muitas pessoas, o principal exercício de cidadania acontece ali. Os governos não mandam na internet. Nem as grandes corporações. Todos podem usá-la, disputar audiência, tentar criar monopolios, ganhar dinheiro e até enriquecer.
Mas é preciso respeitar uma regra básica, do espaço de liberdade. A internet é nossa grande praça pública, aquele lugar das sociedades contemporâneas que não existe mais nas cidades nem nas ruas — mas no computador. Não é magia mas até parece.
O esforço para criar controles oficiais na internet é tipico de ditaduras. O esforço para transformá-la num espaço da iniciativa privada também. Num caso, sacrifica-se a liberdade em nome de uma ideologia. No outro, sacrifica-se a liberdade me nome da propriedade. Quem perde é a humanidade.
Como é fácil de entender, no fim das contas o resultado é o mesmo. Não sou um fanático do individualismo contemporâneo. Mas vivemos num tempo de autonomia para os indivíduos, que têm espaço para seu pensamento, sua existencia, suas escolhas fundamentais e secundárias, sua capacidade de reagir.
É um movimento profundo, maior do que os profetas de todas as escolas de pensamento político do século XX poderiam imaginar.
Numa sociedade de grandes monopólios econômicos e super podres poderes políticos, a internet é nosso lugar de respiro e resistência.
Ninguém nos impede de ler o blogueiro que apreciamos, de xingar o blogueiro inconveniente, de espalhar opinião muito pessoal e manifestar aquela raiva que não paramos de sentir. Ninguém tem o direito de destruir a internet.
Enquanto não houver uma ideia para corrigir seus defeitos sem ameaçar essa liberdade, é bom para todos nós que ela continue assim.
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