Não sou dado àqueles frêmitos e emoções de civismo duvidoso; a foto me causou vergonha e nojo
Orgulhe-se.
Mesmo que esteja entre os que confundem a chegada à sexta economia mundial com tornar-se a sexta potência mundial, não importa -orgulhe-se. Há algo tão engrandecedor do Brasil, e verdadeiro, quanto a falsa grandeza criada por seu erro.
Destruição da Amazônia, 30 a 40 milhões de pessoas -crianças entre elas, muitas crianças- na "linha abaixo da pobreza"; centenas de milhares de família sem terra, quase 300 casos conhecidos e atuais de trabalho escravo, o horror torturante dos hospitais públicos -apesar de tudo, orgulhe-se.
O frêmito que invade o seu corpo e o seu civismo ao ouvir o Hino Nacional, essa música que São Paulo resolveu baratear como abertura de qualquer pelada, não será agora um excesso de sensibilidade. E o umedecer dos olhos diante da bandeira a esvoaçar junto aos símbolos do mundo na ONU, ou em Brasília mesmo, à falta de melhor, estará tão justificado como se tivéssemos uma história de glórias. Orgulhe-se.
Alguns, parece, tiveram o seu choque ou sua mais provável indiferença na internet. Ainda que não tenha sido, digamos que foi, porque hoje em dia tudo tem que partir e chegar via internet, ou não existiu. Mas a minha comprovação de que existiu foi por uma foto pequenina lá na pág. 21 do "Globo".
Um pedaço de caixa de leite, diríamos. No Bahrein. Uma contribuição brasileira aos que lá se enfrentam há tantos meses, com violência fatal, civis contra a ditadura do rei Hamad Al-Kalifa e os fraternos militares e policiais a defender a ditadura. No ano passado, caso talvez único, a Fórmula 1 cancelou o rico GP do Bahrein por não haver segurança capaz de protegê-lo. Nem mesmo com a intervenção militar feita pelas forças da Arábia Saudita, em proteção ao rei-ditador.
O povo bareinita foi dos primeiros a aderir ao que se chama de Primavera Árabe, mas os Estados Unidos têm lá uma grande base naval, sentem-se muito bem com o regime local. E, como Barack Obama é um bom democrata, preferiu sujar as mãos dos sauditas.
Mas aqui o que nos interessa, a nós outros, deste país pacífico, temente a Deus por tantas religiões, hospitaleiro e defensor da paz em toda parte, é o achado.
Na enganosa caixa de leite, um tubo metálico um tanto amarrotado, depara-se com nossa bandeira, impressa, modesta no tamanho, mas iniludível no exotismo. Abaixo dela, extenso e presunçoso, um "made in Brazil" de que ninguém duvide. Imagine, e orgulhe-se. Acima, como é próprio das caixas de leite, seguem-se as indicações de lote; a data de fabricação, maio/ 2011, e a da validade, maio/2013. Tudo em inglês, porque nossa produção é internacional. Mas não sou dado àqueles frêmitos e emoções de civismo duvidoso. A foto me causou um misto de vergonha, de indignação e nojo.
Trata-se de uma cápsula deflagrada de gás lacrimogêneo. Mas não o gás comum: o brasileiro contém um ingrediente agravante: sobre os efeitos respiratórios e oculares, provoca uma espuma que se multiplica e se expele pela boca. Capaz de sufocar, pois. O texto de Rasheed Abou-Alsamh dá notícia da morte de pelo menos uma criança atribuída à reação causada pelo ingrediente brasileiro do gás. Eis o twitter de uma jovem mãe, oposicionista, para outras informações: @AngryArabiyah.
A fábrica do artefato, situada no município fluminense de Nova Iguaçu, tem o sugestivo nome de Condor -nome também da tropa, aeronáutica e terrestre, que Hitler mandou para testar novas armas na Guerra Civil Espanhola, batizando-a de Legião Condor.
Na Primavera Árabe, o Brasil proporciona armas ao poder criminoso. É parte, portanto, do crime contra a humanidade. Ah, nisso sim, põe-se entre as potências.
Orgulhe-se, quem for capaz.
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