terça-feira, janeiro 10, 2012

Flexibilidade como regra - JOSÉ PAULO KUPFER


O Estado de S.Paulo - 10/01/12


A evolução da inflação, ao longo de 2011, até desembocar no exato limite do teto superior do intervalo previsto no sistema de metas teve ares das indicações de filmes brasileiros ao Oscar de Hollywood. Deu o que falar e produziu suspense por um bom tempo, mas saiu de cena no momento seguinte ao anúncio do prêmio para outro concorrente.

Como no caso do Oscar, em que a derrota gera algum debate sobre as condições da produção cinematográfica brasileira, a inflação no limite do teto da meta lançou também alguma discussão sobre o sistema de metas adotado no Brasil. Falcões da economia acusaram o Banco Central de desqualificá-lo, enquanto cabeças heterodoxas aproveitaram para tentar trazer de volta a recorrente ideia da conveniência de rever as regras.

De ambos os lados, na verdade, assomou um certo desconhecimento ou um certo esquecimento da natureza flexível e ajustável do sistema de metas de inflação. Em sua essência, de fato, ele se presta a ajustes - e ajustes são comuns na experiência dos países que o adotaram. Sucessor de outras âncoras de preços, o sistema de metas é uma reciclagem da experiência histórica das metas cambiais e das metas monetárias, ambas rígidas e, por isso mesmo, promotoras de instabilidades. Desse aprendizado resultou um sistema adaptável às circunstâncias, cuja âncora é a expectativa do comportamento dos preços, coordenada pelas ações dos bancos centrais.

No sistema, em resumo, nem a autoridade monetária é totalmente livre para manejar a política monetária sem condicionantes nem as regras a serem obedecidas são estritas. Não é por outro motivo que, disseminado pelo mundo a partir do início dos anos 90, o sistema assume diferentes configurações, conforme a economia em que é aplicado. Pode-se dizer que a arquitetura dos regimes de meta de inflação é montada de acordo com os arranjos políticos e institucionais nas respectivas sociedades.

No Brasil, a referência da meta é a evolução cheia do IPCA, índice de preços ao consumidor calculado pelo IBGE, no período de um ano civil, com a aceitação de um intervalo de dois pontos porcentuais abaixo e acima do centro (esse intervalo, não custa lembrar, já foi de 2,5 pontos, entre 2003 e 2005). Além disso, quem fixa a meta e a amplitude do intervalo, com dois anos de antecedência, não é o Banco Central, mas o Conselho Monetário Nacional.

Das principais economias que adotam sistemas de metas de inflação, nenhuma replica exatamente o modelo brasileiro - são raras, na verdade, as réplicas exatas mundo afora. Inglaterra, Canadá e África do Sul, por exemplo, usam alguma medida de núcleo de inflação. Nos Estados Unidos, a meta é tão flexível que, embora implícita, ainda nem foi formalizada - falar nisso, recentemente, o presidente do Fed, Ben Bernanke, declarou-se favorável ao estabelecimento de metas de inflação explícitas.

São muitas também as variações em relação ao prazo de apuração da meta, bem como a fixação de responsabilidades pela definição de metas e intervalos de aceitação. Há países que definem períodos de ano e meio ou dois para alcançar a meta. E existem casos, como os da Espanha, Suécia e Austrália, em que simplesmente não é fixado prazo algum.

Igualmente muitas são as fórmulas no processo de definição de metas e regras do sistema. Em geral, a responsabilidade é compartilhada por banco central e ministro de Finanças, com casos variados em que um ou outro são responsáveis exclusivos.

Uma análise da evolução do sistema, nas duas décadas em que se transformou em preferência mundial, não deixa dúvidas de que as metas - incluindo seus intervalos, que estão presentes na maioria das experiências - podem ser rompidas ou mesmo alteradas, de acordo com os acontecimentos. O importante é que as decisões de flexibilizar o sistema não traiam o compromisso de manter a inflação sob controle e em níveis suficientemente baixos para não produzir instabilidades econômicas.

Deriva dessa constatação a conclusão de que se aferrar à busca obsessiva dos centros das metas, sem considerar contextos e conjunturas, não combina com a natureza do sistema. Não combina também com a vida real. Visto em perspectiva, o sistema brasileiro de metas de inflação, que só alcançou o centro da meta em 4 dos seus 13 anos de existência, mas há 8 se mantém dentro do intervalo fixado, tem sido relativamente bem-sucedido. Ao estabelecer a flexibilidade como regra, tem se mostrado instrumento eficaz na absorção das turbulências em que a economia global se meteu já faz um tempo.

Nenhum comentário: