FOLHA DE SP - 25/11/11
A pura contrariedade é inútil diante da violência do pragmatismo científico de mercado
Não sei se existe ligação direta entre os baseados queimados na USP e a tragédia de Felipe Ramos Paiva, assassinado no estacionamento da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade.
A presença ostensiva da PM no campus levou à detenção de dois rapazes que fumavam maconha. Houve enfrentamento, e o episódio culminou com a invasão da reitoria por um grupo minoritário de estudantes da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.
Segundo manifesto de apoio ao ato, a morte de Paiva e a prisão dos jovens estariam sendo usadas para desviar a atenção do real objetivo da ocupação policial: a censura às manifestações contrárias à privatização do ensino.
O Estado é repressor por natureza, as leis do comércio também. Frases que sobreviveram ao tempo, como "abaixo a repressão", e a definição de luta política ao ocorrido desafinam no atual contexto.
Vivemos em uma democracia; o PT está na Presidência, e o PSDB, composto de ex-formandos das melhores faculdades paulistas, à frente do Estado. Em última instância, quem convocou a tropa foram os próprios alunos, seus familiares e educadores.
O texto dos estudantes fala de revistas nas salas de aula e perseguição aos centros acadêmicos; aborda o direito dos negros, a crise sistêmica do capitalismo e a truculência das Forças Armadas. É uma metralhadora giratória de repúdio à política educacional da atual administração, à ganância econômica e aos rumos do planeta.
O morto é citado como uma fatalidade manipulada pelo poder.
João Ubaldo Ribeiro me enviou uma entrevista da historiadora e psicanalista Elisabeth Roudinesco.
Nela, a cientista francesa afirma que o fim da utopia comunista, cujo eco ainda se escuta nas reivindicações de São Paulo, desembocou no triunfo da economia e da ciência.
As ciências humanas, esclarece o escritor baiano, passaram a ser rejeitadas porque é impossível aplicar sobre elas o método científico a contento. Na sua subjetividade, o observador é também sujeito do experimento, o que destrói a imparcialidade de qualquer pesquisa.
Paiva estudava atuária, disciplina que trata dos riscos das operações financeiras, especialmente no setor de seguros e pensões. O rapaz aprendia a buscar padrões de normalidade em sistemas imprevisíveis e exemplifica a nova ideologia à qual Roudinesco se refere.
Não há como adivinhar o futuro de um centavo poupado, o destino de um homem ou o instante de uma hecatombe. Mas se trocarmos uma pessoa por 1 milhão, ou 1.000 moedas por bilhões delas, e pensarmos no longo prazo, curvas intermediárias de comportamento oscilarão dentro de uma norma legível.
Seguindo-as, é possível antecipar revoluções sociais, chuvas torrenciais e desastres súbitos. A média comanda.
Práticas poéticas e individualizantes, como a psicanálise, estão perdendo o terreno para as estatísticas irrefutáveis, e manipuláveis, dos reguladores de humor.
O teatro recrudesceu, os livros de autoajuda proliferaram, e a cultura de massa dominou o cinema e a música. A arte perdeu o papel de agente transformador e virou consumo, capricho pessoal mensurável gerador de riqueza.
E foi justamente das cadeiras marginais, no sentido de à margem da ordem vigente, de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, que eclodiu o levante.
A pura contrariedade é inútil diante da violência do pragmatismo científico de mercado. Os amotinados esperneiam, espelhando a crise que sua área atravessa, e carecem do que é abundante nas ditas ciências duras: a lógica.
Paiva foi vítima da miséria urbana, do tráfico de armas, de drogas, da falta de policiamento, de iluminação e, sobretudo, de uma força indiferente às planilhas para se proteger do amanhã: a irracionalidade. A atuária também não dá conta de cruzar a esquina.
O juiz devia obrigar todo mundo a ler, ou reler, "Crime e Castigo".
A pura contrariedade é inútil diante da violência do pragmatismo científico de mercado
Não sei se existe ligação direta entre os baseados queimados na USP e a tragédia de Felipe Ramos Paiva, assassinado no estacionamento da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade.
A presença ostensiva da PM no campus levou à detenção de dois rapazes que fumavam maconha. Houve enfrentamento, e o episódio culminou com a invasão da reitoria por um grupo minoritário de estudantes da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.
Segundo manifesto de apoio ao ato, a morte de Paiva e a prisão dos jovens estariam sendo usadas para desviar a atenção do real objetivo da ocupação policial: a censura às manifestações contrárias à privatização do ensino.
O Estado é repressor por natureza, as leis do comércio também. Frases que sobreviveram ao tempo, como "abaixo a repressão", e a definição de luta política ao ocorrido desafinam no atual contexto.
Vivemos em uma democracia; o PT está na Presidência, e o PSDB, composto de ex-formandos das melhores faculdades paulistas, à frente do Estado. Em última instância, quem convocou a tropa foram os próprios alunos, seus familiares e educadores.
O texto dos estudantes fala de revistas nas salas de aula e perseguição aos centros acadêmicos; aborda o direito dos negros, a crise sistêmica do capitalismo e a truculência das Forças Armadas. É uma metralhadora giratória de repúdio à política educacional da atual administração, à ganância econômica e aos rumos do planeta.
O morto é citado como uma fatalidade manipulada pelo poder.
João Ubaldo Ribeiro me enviou uma entrevista da historiadora e psicanalista Elisabeth Roudinesco.
Nela, a cientista francesa afirma que o fim da utopia comunista, cujo eco ainda se escuta nas reivindicações de São Paulo, desembocou no triunfo da economia e da ciência.
As ciências humanas, esclarece o escritor baiano, passaram a ser rejeitadas porque é impossível aplicar sobre elas o método científico a contento. Na sua subjetividade, o observador é também sujeito do experimento, o que destrói a imparcialidade de qualquer pesquisa.
Paiva estudava atuária, disciplina que trata dos riscos das operações financeiras, especialmente no setor de seguros e pensões. O rapaz aprendia a buscar padrões de normalidade em sistemas imprevisíveis e exemplifica a nova ideologia à qual Roudinesco se refere.
Não há como adivinhar o futuro de um centavo poupado, o destino de um homem ou o instante de uma hecatombe. Mas se trocarmos uma pessoa por 1 milhão, ou 1.000 moedas por bilhões delas, e pensarmos no longo prazo, curvas intermediárias de comportamento oscilarão dentro de uma norma legível.
Seguindo-as, é possível antecipar revoluções sociais, chuvas torrenciais e desastres súbitos. A média comanda.
Práticas poéticas e individualizantes, como a psicanálise, estão perdendo o terreno para as estatísticas irrefutáveis, e manipuláveis, dos reguladores de humor.
O teatro recrudesceu, os livros de autoajuda proliferaram, e a cultura de massa dominou o cinema e a música. A arte perdeu o papel de agente transformador e virou consumo, capricho pessoal mensurável gerador de riqueza.
E foi justamente das cadeiras marginais, no sentido de à margem da ordem vigente, de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, que eclodiu o levante.
A pura contrariedade é inútil diante da violência do pragmatismo científico de mercado. Os amotinados esperneiam, espelhando a crise que sua área atravessa, e carecem do que é abundante nas ditas ciências duras: a lógica.
Paiva foi vítima da miséria urbana, do tráfico de armas, de drogas, da falta de policiamento, de iluminação e, sobretudo, de uma força indiferente às planilhas para se proteger do amanhã: a irracionalidade. A atuária também não dá conta de cruzar a esquina.
O juiz devia obrigar todo mundo a ler, ou reler, "Crime e Castigo".
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