Choro
IVAN ANGELO
REVISTA VEJA SP
Toca o interfone. O porteiro quer saber se o motoboy da farmácia pode subir. Sim, claro. Daí a pouco soa a campainha da porta de serviço e é ele, um rapaz alto, com o capacete pendurado no braço e a encomenda da farmácia na mão. Tenho de conferir a nota, dar-lhe o cheque, assinar o protocolo, e é tudo; ele sai, vai esperar o elevador no hall, encosto a porta. Só encosto, porque pretendo abrir o pacote e jogar a embalagem na lixeira. Quando abro a porta, ele ainda está lá, e chora alto.
Vacilo um instante, golpeado pela cena; não tenho coragem de invadir sua intimidade; cerro discretamente a porta, sem fechar, e fico protegido, esperando que o elevador chegue e me liberte daquele estupor, o sofrimento de um desconhecido.
Tento rapidamente me lembrar de algum detalhe do breve momento em que estivemos juntos, algo que me teria escapado ao trocarmos o pacote por papéis, qualquer coisa que me teria avisado de que iria ocorrer algo desconcertante, íntimo, no final daquela relação efêmera e prosaica, um detalhe como mãos trêmulas ou voz embargada. Mesmo que tivesse notado, poderia interpretar tais detalhes como prenúncio de choro, em encontro tão rápido? Sem saber como eram a sua voz ou as suas mãos nos bons e nos maus momentos?
Não, não houve sinais; reconstruo a cena: abro a porta, rapaz de fino trato e traços, o pacote, a caneta dele, o cheque, o papel para o visto, a caneta de volta, aceita uma água, não obrigado, então obrigado, boa tarde, com licença — e só.
O elevador tarda, tento parecer inaudível, respiração de pessoa escondida. Pela fresta ouço um soluço alto, entrevejo um soco na parede, não um soco com os nós dos dedos, mas um golpe com a lateral da mão fechada, testa encostada na parede. Decido-me: vou lá.
Uma vez vi meu pai chorando. Não vi, ouvi. Coragem não tive de ir lá, passar a mão na cabeça dele. Creio que não seria isso que faria se tivesse ido lá; teria encostado nele, acho que teria chorado junto. Era menino muito pequeno e estava assustado porque tinha ouvido as duas pancadas com que ele havia matado nosso cãozinho, doente terminal de raiva. Eu estava deitado, meus irmãos dormiam, e eu não conseguia dormir porque desconfiava que aquilo ia acontecer, desconfiava daquele buraco aberto no quintal para plantar um pé de mamão. Ele havia esperado a madrugada a fim de nos poupar de algum sofrimento, mas eu ouvi as pancadas, e o ouvi enterrá- lo, e depois ele entrou na cozinha e ficou lá sem acender a luz, e daí a pouco ouvi os soluços dele, por um tempo que não acabava mais. Era a primeira vez que o via chorar, a primeira vez que via um homem chorar. De manhã ele disse que o cachorro tinha fugido. Fui olhar o mamoeiro plantado e nunca disse a ele que sabia.
Vou lá, mas fazer o quê? Num segundo ensaio a pergunta ao motoqueiro: posso te ajudar? Depois oferecer uma limonada, talvez; de qualquer forma não deixá-lo descer naquele instante, não seria seguro que ele entrasse de moto no trânsito violento da cidade com aquele transbordamento de si mesmo.
Abro a porta já falando “amigo”, e nesse momento eu o vejo entrar pela porta do elevador com sua dor escondida pelo capacete. Percebo na hora que havia colocado o capacete para que os passageiros não vissem que estivera ou estava chorando. Não atende ao meu chamado, a porta automática se fecha.
Corro a olhá-lo da varanda. Sai do prédio, sobe na sua moto, dá a pedalada de partida do motor e segue ereto, rosto indevassável, como qualquer motoqueiro sem sofrimento. Faz aquele bamboleio na curva e é absorvido de novo pelo anonimato.
Nenhum comentário:
Postar um comentário