Sonhos
MANOEL CARLOS
Revista Veja RIO
Falávamos sobre sonhos. Miriam afirmava que não sonhava nunca. Rafael contestava:
— Sonha sim, é que não se lembra do que sonhou quando acorda.
— Todo mundo sonha — falei eu.
— Se não fosse assim — continuou Rafael —, o que seria da psicanálise?
E Miriam:
— O que eu sei é que, depois dessas nossas reuniões, sonho sempre com vocês! Já não aguento mais!
— Freud dizia que os sonhos quase sempre têm uma pitada do dia anterior — ensinou Rafael.
Diana, que até então estivera aos beijos com Mauricinho, seu novo par amoroso, entrou na conversa:
— Eu nunca lembro o que sonhei.
— Meu analista me pede para anotar o sonho assim que acorde — falou Mauricinho.
— É a praxe — informou Raul —, mas eu usava um gravador de pilha na mesa de cabeceira.
— Queria saber o que o Freud sonhava — falou Diana.
— No livro Interpretação dos Sonhos, tem lá um capítulo em que ele conta alguns dos seus sonhos — disse eu.
— Certamente inventou a maioria deles, para impressionar os pacientes — disse André, completando com um trocadilho infame que ele adorava: — Freud é fraude!
— Perdoem minha ignorância, mas eu nunca li Freud — confessou Diana.
— Nunca leu foi nada, isso sim! — golpeou Horácio, ex-marido de Diana, que morria de um tardio ciúme, o que lhe parecia dar o direito de agredi-la sempre. E um de nós, quando isso acontecia, tinha de intervir, já que a discussão entre eles, quando pegava fogo, ficava difícil de ser dominada. As labaredas lambiam a civilidade, revelando o lado perverso de cada um deles. E agora, diante dos beijos de Diana e Mauricinho, Horácio tinha ganas de pular sobre os dois, e essa gana era visível a olho nu. A intervenção sobrou para mim:
— Vamos parar com isso?
Diana se defendia:
— Ele que começou! Fui sincera, dizendo que não tinha lido Freud, e ele precisava me agredir?
— Fui sincero também: disse que você nunca leu nada!
— Pior é você, que diz para todo mundo que Proust é fundamental e nunca passou de vinte páginas do primeiro volume da busca… da busca… já nem lembro o que ele buscava!
— O tempo perdido — completou André, estourando de rir!
Horácio estava rubro e gaguejava de indignação:
— Mentira! Li o Proust
duas vezes, in-tei-ri-nho!
duas vezes, in-tei-ri-nho!
— Ah, ah, ah, para cima de mim? Esquece que fomos casados e que você me disse mais de uma vez que achava o Proust um tremendo de um chato, mas não ficava bem afirmar isso?
— Desgraçada, mentirosa, vou te matar!
E ameaçou saltar sobre ela, sendo contido por todos nós. O Café Severino parou de súbito, com todos os presentes olhando para a gente, preocupados com o que ameaçava rolar. Em seguida, como era de esperar, Horácio saiu do Café, bufando e jurando vingança.
Diana ensaiou um discurso, tentando nos contar que Horácio também mentia quando falava da beleza de romance que era A Montanha Mágica, já que ele nem sequer tinha o livro em casa e que também… mas foi impedida de continuar com a indiscrição, pelo próprio Mauricinho. Após alguns segundos, ela rompeu o silêncio, num tom de voz que ameaçava transformar-se em choro:
— Fui educada para ser feliz e não para ficar me exibindo numa roda de homens, para que não pensem que sou burra.
— Isso mesmo — concordou André, divertindo-se.
— Digam: que importância tem eu não ter lido Freud?
— Nenhuma! A felicidade dispensa a psicanálise!
E com essa frase, uma de suas preferidas, André fechou o tema dos sonhos, pediu mais uma garrafa do tinto chileno e passamos a falar sobre a renda das mulheres, que cresceu, no Brasil, 68% nos últimos dez anos!
— Jura? — perguntou Miriam.
— Está nos jornais — informei.
— E a dos homens? — quis saber Diana, ansiosa e ainda fungando.
— Cresceu 43% — lamentou André.
— Taí — concluiu ela. — Isso, para mim, é muito mais importante do que Freud!
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