Mexilhão movido a hidrogênio
FERNANDO REINACH
O Estado de S.Paulo - 18/08/11
O carro movido a hidrogênio é uma das tecnologias que prometem melhorar nosso futuro. Mas se ilude quem acredita que esta ideia se originou nos laboratórios dos espertos Homo sapiens. Ela é utilizada faz bilhões de anos por bactérias. Agora foi descoberto que um ser bem mais inteligente que uma bactéria utiliza essa fonte limpa de energia - um mexilhão que vive nas profundezas dos oceanos.
Durante o primeiro bilhão de anos, entre o momento que a vida surgiu no planeta, e 2,4 bilhões de anos atrás - quando surgiram os primeiros seres vivos capazes de fazer fotossíntese -, todas as formas de vida obtinham sua energia oxidando compostos que estavam presentes nos mares, como o metano, o hidrogênio e gases de enxofre. Havia pouco oxigênio e o gás carbônico era abundante. Foi nesta época que estes primeiros seres vivos atravessaram uma crise semelhante à que vivemos hoje. Eles consumiram os recursos disponíveis no planeta e modificaram o meio ambiente de tal modo que colocaram sua sobrevivência em risco.
Foi nesta grande crise que surgiram os microrganismos capazes de utilizar a energia solar. Esta nova tecnologia se chama fotossíntese. De posse dessa tecnologia limpa e sustentável, eles dominaram o planeta. Foi então que surgiram os animais capazes de se alimentar dos seres vivos detentores da fotossíntese, nós entre eles. E é assim o mundo de hoje: plantas, algas e bactérias fotossintéticas produzem todo o alimento do planeta e um número enorme de espécies obtém sua energia comendo, direta ou indiretamente, plantas e algas. Nestes últimos 2,4 bilhões de anos, os descendentes dos seres vivos capazes de obter sua energia do hidrogênio, metano e gases de enxofre quase desapareceram. Tiveram de recolher aos poucos ambientes em que esses gases ainda estavam disponíveis.
Em 1977, oceanógrafos descobriram que no fundo dos oceanos, em profundidades superiores a 2.000 metros, onde não chega luz e portanto não é possível a vida baseada na fotossíntese, existem enormes chaminés, semelhantes a vulcões submarinos. Essas chaminés expelem água quente vinda do interior do planeta. A água que sai dessas chaminés tem uma composição semelhante a que provavelmente existia nos mares 3 bilhões de anos atrás, antes do surgimento da vida. Logo se suspeitou que nestes lugares seria possível encontrar os descendentes dos seres vivos primitivos, aqueles que provocaram seu próprio fim destruindo o ecossistema em que viviam.
Em 1981, os cientistas descobriram que ao redor dessas chaminés, isolada no fundo do mar, existia uma comunidade complexa de seres vivos, bactérias, vermes e camarões organizados em um ecossistema que vivia sem fotossíntese, capazes de obter sua energia do hidrogênio, metano e gases de enxofre cuspidos pelas entranhas do planeta.
Foi ao redor dessas chaminés que foram descobertos moluscos semelhantes a mexilhões (Bathymodiolus puteoserpentis). Mas como eles se alimentavam? Ao longo dos últimos anos foi descoberto que eles possuem em suas guelras um grande número de bactérias simbiontes. Os mexilhões bombeiam a água através das guelras permitindo que as bactérias tenham acesso constante aos gases dissolvidos na água que sai das chaminés. As bactérias crescem oxidando os gases e são devoradas pelos mexilhões. Agora, analisando fragmentos de guelras coletadas no fundo do mar, os cientistas demonstraram que essas bactérias se alimentam principalmente do hidrogênio presente na água. Os genes responsáveis pela quebra do hidrogênio foram identificados e foi possível demonstrar que é com a energia da quebra do hidrogênio, e sua ligação ao oxigênio produzindo água, que estas bactérias transformam o CO2 em açúcar. O que uma planta como a cana-de-açúcar faz utilizando energia solar, essas bactérias fazem hidrolisando hidrogênio. O processo é tão eficiente que essas comunidades de bactérias consomem grande parte do hidrogênio que sai das chaminés e sustentam toda a comunidade de mexilhões que vive nos oásis que se formam ao redor das chaminés. O resultado demonstra que a "economia do hidrogênio", tão propagada nos últimos anos aqui na superfície, não somente já existiu no passado remoto do nosso planeta, mas ainda prospera em volta de chaminés espalhadas no fundo dos mares.
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