Miopia
FAUSTO MARTIN DE SANCTIS
FOLHA DE SP - 22/08/11
Chamar de política uma ação que é proveniente da Justiça Federal, resultado da atuação do Ministério Público e da polícia, seria uma temeridade
Autoridades têm desqualificado as ações que prenderam 36 pessoas na Operação Voucher, deflagrada em 9/8. A crítica restringe-se ao número de prisões, à exposição e ao uso de algemas. Não há censura semelhante para presos comuns.
Alegar motivação política pode desviar o foco e encobrir muitos "pecados". Não houve a mesma indignação quanto aos próprios fatos que envolveriam homens públicos de altos escalões do Ministério do Turismo, tampouco ao relacionamento, em tese, promíscuo de um grupo que repassaria recursos para empresas fictícias.
Deixam a impressão de que ignoram a perplexidade de todos pela notícia da apropriação privada do bem público. Com sutileza, passam-se mensagens negativas: em política tudo é permitido e faz parte das regras do jogo.
Aparentemente, não seriam mais capazes de discernir entre trabalho sério-investigativo do Estado e as ambições do poder. Até os fatos virem à tona, a liberdade de seus protagonistas seria, em tese, total.
Os personagens agora são outros, mas os fatos são os mesmos de sempre. O sistema criminal tímido estimularia tais crimes? Não teria havido aloprada ação estatal, como alguns insistem em divulgar, já que recursos públicos estariam sangrando e as algemas atenderiam a norma universal de segurança.
Chamar de política a ação proveniente da Justiça Federal, resultado da atuação do Ministério Público e da polícia, seria uma temeridade.
Não se pode de antemão qualificar investigados como vítimas quando, sendo de Direito, o Estado age em nome de todos e pautado na lei.
Se existem elementos, espera-se atuação com rigor. Nesta ação, homens públicos poderosos certamente sentem que as leis podem atingi-los tão duramente quanto a qualquer um. Um sistema judicial que, independentemente da consagração da presunção de inocência, aja de maneira implacável.
E aí as coisas deveriam ser vistas com um cristal distinto, e não mais pela seguinte (des)orientação: desnecessidade de algemas e de publicidade de decisões judiciais, muito menos prisão, até porque sempre faltaria algum dado concreto; esta deveria ser evitada, mesmo no caso de ameaças, destruição de provas, quadrilha ou bando (este tido por não grave).
Seria determinante a substituição da prisão por uma medida alternativa (recolhimento noturno em casa, proibição de se aproximar da vítima ou de se ausentar da cidade...), mesmo que patente a impossibilidade de controle; quanto à fuga, um direito, e não a frustração à aplicação da lei.
O estrangeiro possuiria a faculdade de ser ouvido onde reside, mesmo que isso representasse a inutilidade da eventual pena; a credibilidade da vítima, das autoridades processantes e da lei seria colocada em xeque.
O homem é capaz do melhor e do pior, dependendo se desassociado do direito e da justiça. Deve-se observar os abismos da alma, como aconselhava Chamfort, para talvez concluir pela desmedida ambição que anima e domina certas ações, evitando tomar o dito pelo não dito. Severidade extremada ou suavidade excessiva não podem ser as respostas de um sistema punitivo, que deve ter existência real e demandar tratamento sempre equânime. Tal forma de agir das instituições é que as torna legítimas.
Aliás, códigos de conduta não discriminam. Não se pode aceitar, creia-se, que seja bom e normal viver nas condições da faixa de Gaza, ainda que, aqui ou acolá, atitudes ufanistas encubram a ordem do dia. Revelam olhares sombrios e obtusos sobre o que seja vida justa em comum.
FAUSTO MARTIN DE SANCTIS é juiz do Tribunal Regional Federal da 3ª Região e escritor.
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