Desigualdade, tendência do verão
BARBARA GANCIA
FOLHA DE SP - 19/08/11
Há quantas décadas São Paulo brilha em vários dos quesitos que ora fazem Londres arder?
"VOCÊ TEM CASACO de couro da Forum?" A pergunta teria sido encarada de forma natural tivesse ela sido feita nas dependências de um shopping center. Mas soou para mim algo inusitada ao ser formulada no curso de um sequestro-relâmpago sofrido há 11 anos, no bairro do Sumaré.
Eu sempre havia me perguntado como responderia em uma situação dessas (temia reagir à italiana, com passionalidade extremada, e acabar com uma azeitona cravada na testa). Acho que me saí melhor do que a encomenda. Selei o episódio escrevendo junto com a jornalista que estava comigo um artigo para a revista "Marie Claire" intitulado: "Fomos assaltadas e fizemos amizade com os bandidos".
Não me sentia à vontade para falar sobre o caso na época -tanto é que apenas a sombra do nosso perfil aparece na foto que ilustra a reportagem-, nem para colocar o pé para fora de casa por um bom tempo depois do ocorrido. Mas uma década já se passou e o assunto volta à tona por motivos outros que não a violência paulistana.
Fomos interceptadas no semáforo da rua Heitor Penteado por um garoto a quem os institutos de pesquisa bem poderiam classificar de "classe média". Ele tinha aparelho nos dentes, alguma escolaridade e vocabulário de bandido, ou seja, uma figura comum nos dias de hoje. Nos abordou de arma em punho e veio acompanhado de duas amigas, uma loira com considerável e visível investimento monetário na juba e a outra, negra, gorducha, simpática, que lembraria a Jennifer Hudson.
Ninguém no grupo tinha mais de 21 anos. Desandei a falar assim que entraram no carro e lá fomos nós de caixa eletrônico em caixa eletrônico. Quatro horas mais tarde, vários quilômetros rodados e uma parada no posto para reabastecer, nossos novos amigos, sempre de arma apontada para nós, se convenceram de que não tínhamos dinheiro e resolveram ir saquear minha casa. Enquanto vasculhava a gaveta atrás de roupas de grife, Miss Simpatia contou-me do filho e eu lhe dei um bicho de pelúcia. "Toma, este é seu, não faz parte do assalto", disse-lhe. Acho que eu tinha tomado umas a mais naquela noite.
De volta ao carro, e sempre sob ameaça, resolvi despejar um balde de perguntas sobre o rapaz: "Por que um cara como você se dedica a este tipo de atividade?", queria saber. "Na verdade", disse-me, "Isso é um bico".
Contou-me que acabara de deixar a noiva em casa. Sua mãe desconfiava de que os tênis, os eletrônicos e as noitadas não vinham do trampo de carteira assinada, mas preferia não entrar em detalhes.
"Não é um tanto arriscado levar a vida assim?", insisti. Ele fez que sim com a cabeça. "De alguma coisa a gente tem que morrer, né?"
Nisso, a fofucha que estava comigo no banco de trás, a loira, grudou o cano da arma na minha têmpora e disse: "Se você não calar a boca, eu te mato". Não me impressionou. "Sabe quantas vezes ao dia eu ouço essa frase?", devolvi. O carro inteiro caiu na gargalhada.
Podia ter sido fatal, mas bicho ruim não morre, especialmente em se tratando de jornalista. Vivi para constatar que, por uma vez, os londrinos não estão ditando moda. Que a desigualdade, a ilusão do multiculturalismo e a sedução do consumismo que faz a roda girar e que ora incendeiam o verão londrino já chegaram por estas bandas faz muitas estações. É São Paulo dando uma de "trendsetter" mundial, olha só que luxo.
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