E se não fossem fantasmas?
Rolf Kuntz
O Estado de S. Paulo - 15/12/2010
Dar dinheiro público a entidade fantasma é contra a lei; financiar festa ou show municipal com recursos federais não é. Mas o dinheiro do contribuinte vai sempre para o ralo, seja ou não realizado o evento, porque no fundo a lambança é uma só: a transformação do Orçamento numa pizza para ser estraçalhada em benefício de interesses particulares. A bandalheira é realizável dentro ou fora da lei, segundo a vocação de cada parlamentar, porque a espoliação do Tesouro é aceita como fato normal da política. De acordo com um pisadíssimo lugar comum, o Orçamento brasileiro é peça de ficção. Mas a maior das ficções é a concepção do processo orçamentário, no Brasil, como parte do governo democrático. Em democracias mais avançadas, a submissão da proposta orçamentária ao Parlamento tem pelo menos duas funções políticas importantes. Uma delas é facilitar a participação democrática na definição dos gastos públicos. A outra é permitir o controle das ações do governo, incluída a alocação de recursos para a guerra. Houve quem vinculasse as possibilidades da paz à difusão da ideia republicana, isto é, à multiplicação de sistemas políticos fortemente orientados pela noção do público - da coisa pública, do interesse público - e governados com transparência. O objetivo continua distante, mas a tese ainda parece defensável. No Brasil, as noções da função parlamentar e do uso de recursos públicos permanecem longe da ideia tradicional de republicanismo. A maioria dos parlamentares pouco ou nada se envolve na formulação de objetivos nacionais. Sua participação no processo orçamentário raramente vai além do esforço de inclusão de emendas paroquiais e clientelísticas, sem a mínima vinculação com qualquer ideia de prioridades para o País. Nem mesmo a ideia de país parece ter sentido para esses vereadores federais. As emendas são aprovadas quase sempre sem discussão, graças a um acordo - tácito ou explícito, segundo a circunstância - de cooperação no ataque ao Tesouro. Cada um respeita as manobras do outro e todos podem viver em paz. Que as emendas sejam quase sempre de interesse particular é fora de dúvida. As prioridades não são definidas de acordo com objetivos nacionais, mas, na melhor hipótese, com base na conveniência político-eleitoral de cada um. Nesse jogo, o congressista reduz drasticamente a escala de suas funções e transforma o Parlamento em bolsa de transações privadas. O ambiente e as normas da vida parlamentar contribuem para essa distorção. O leitor menos conformista poderá perguntar por que seu dinheiro deve ser destinado a festas ou shows municipais ou mesmo a obras de responsabilidade do poder local ou, no máximo, estadual. Que uma parte desse dinheiro vá para entidades fantasmas não surpreende. Tudo é muito fácil, quando os controles são precários. No fim do ano passado, segundo relatório recente do Tribunal de Contas da União, havia 50 mil prestações de contas entregues aos ministérios e não analisadas. Outras 6 mil eram devidas e não haviam sido encaminhadas. Os dois bolos, somados, envolviam transferências de R$ 24 bilhões. Isso é privatização, com ou sem fraude. Privatização é também o uso das famosas verbas indenizatórias para manutenção de escritórios políticos, para contato com as bases e para distribuição de favores a companheiros e eleitores. Discute-se muito se as tais verbas são ou não excessivas, mas quase nunca se pergunta se é obrigação do contribuinte financiar o escritório político do parlamentar e outros itens de seu exclusivo interesse. Como legislador ele é um agente público. Mas, como político interessado numa carreira, é uma figura privada, assim como são privados o partido e as coligações. Fraudes podem ocorrer em qualquer sistema orçamentário. Políticos podem furtar dinheiro em qualquer Parlamento e em qualquer nicho governamental. Sempre é possível ampliar o repertório da malandragem. Mas a comilança pode ser feita dentro da lei, ou quase, quando a interpretação das normas é feita com alguma elasticidade. Nem sempre é fácil provar, por exemplo, a ilegalidade do aparelhamento e do loteamento da administração pública. Também é difícil contestar legalmente a transferência de benefícios pelo Tesouro ou por bancos estatais. O requisito da impessoalidade na gestão pública é um dos itens modernos da Constituição, mas é raramente respeitado. Se essa regra não pegou, é porque os componentes arcaicos da política brasileira são dominantes. No Brasil, a chamada esquerda é tão eficiente quanto as velhas oligarquias na confusão entre o público e o privado. |
Nenhum comentário:
Postar um comentário