Curvas nos caminhos da liberdade
Gaudêncio Torquato
O ESTADO DE SÃO PAULO - 14/11/10
A liberdade de expressão e a liberdade de imprensa, ao lado do livre exercício da religião, do direito de as pessoas se reunirem e poderem reivindicar reparações às ofensas recebidas, constituem o lume da democracia moderna. Essas liberdades são objeto da Primeira Emenda à Constituição americana. Em 1791, Thomas Jefferson, impressionado pelos acontecimentos que vivenciara na França em 1789, onde era embaixador, propôs que a Carta abrigasse dez artigos (Bill of Rights).
Desde então, esse ideário patrocinado pelas Revoluções Francesa e Americana tem sido o facho que ilumina as democracias contemporâneas, servindo, ainda, de baliza para enquadrar regimes que tentam, de forma aberta ou latente, negar ou escamotear seus valores. As Constituições democráticas abrem grandes espaços para o escopo das liberdades e dos direitos à informação.
O Brasil é um exemplo de país que disseminou a semente dos direitos. O inciso XIV do artigo 5.º da Constituição assegura o acesso à informação e resguarda o sigilo da fonte; o inciso XXX assegura o acesso às informações de órgãos públicos; o inciso IV, a manifestação do pensamento; o inciso IX, a liberdade de expressão; o inciso X, a inviolabilidade da vida privada; enquanto o artigo 220 proíbe a censura. O cidadão pode-se considerar protegido por um cinturão de direitos. Diante de tão extensa muralha normativa, há perigo de soçobrar nosso edifício democrático, principalmente as colunas das liberdades de expressão e de imprensa? Essa é a recorrente dúvida que se tem expandido no Brasil, em razão de propensão de alguns perfis a defender sistemas de "controle social da mídia", a partir de conselhos de comunicação, alguns até em estágio de criação por Assembleias Legislativas, como as do Ceará, da Bahia, de Alagoas e do Piauí. O próprio governo Lula, por intermédio do ministro Franklin Martins, da Secretaria de Comunicação Social, tem procurado inserir na agenda o controle da mídia. Um evento realizado em Brasília, na semana passada, exibiu um panorama internacional sobre a questão.
Analisemos os aspectos polêmicos. De pronto, uma constatação: o universo das comunicações sociais e tecnológicas está a merecer amplo foro de debates, principalmente quando se leva em conta a concepção do mundo global, com seu centro de irradiação na Telépolis, espaço sem fronteiras onde infovias e bits propiciam, num átimo de segundo, a integração de linguagens, sistemas e processos de mídias muito diferentes. Vê-se a conjunção de dois planetas, o primeiro circulando em torno do polo das comunicações sociais - onde as mídias da era Gutenberg (meios impressos) se encontram com as mídias da era eletrônica (rádio e televisão) - e o segundo margeando o polo da tecnetrônica (mescla da tecnologia e eletrônica para formar as redes sociais da internet).
Interrogação posta na mesa: os códigos que regulam atividades jornalísticas nos campos impresso e eletrônico devem ser os mesmos? O repertório de abusos que se viram nas infovias da internet, ao longo do pleito deste ano, indica que "uma terra de ninguém", semeada de barbárie, está a carecer de uma base regulatória, mesmo estreita. O direito à livre expressão foi (ab)usado para produção de falsidades, histórias estapafúrdias, glorificação e demonização de perfis, no intuito de corroer ou elevar o pedestal de candidatos. Dizer que o exercício expressivo na internet é regido por nossos códigos - dentre eles, o defasado Código Eleitoral - é ferir a verdade. Outra questão diz respeito aos limites do território das telecomunicações. Como se sabe, esse ambicionado filão, sob regime da livre-iniciativa, forma um dos negócios mais prósperos do País, emoldurando o portfólio de grupos internacionais. A área que opera a plataforma tecnológica não tem competência legal para entrar na seara da comunicação social. Quem produz o prato não pode fabricar a comida. Há, no entanto, sinais de que as telecomunicações produzem conteúdos. Trata-se de concorrência desleal.
Ao lado das abordagens concernentes à convergência, mobilidade e interatividade das novas mídias, desponta o velho nó da propriedade cruzada de meios de comunicação. A tese da democratização do universo comunicativo afasta a possibilidade de um mesmo proprietário ser dono de TV, rádio e jornal numa mesma região. Tais cadeias constituem, como é sabido, extensões da própria cultura política, sendo os meios de comunicação cabeças de ponte para a perpetuação do mandonismo de grupos regionais. Eliminar esse costume seria um golpe mortal nos feudos, meta muito difícil de ser alcançada. Decisão nesse sentido passaria pelo crivo dos próprios interessados.
Outro fator de dissabor - que afeta a classe política - diz respeito à reparação de danos (ofensas, calúnias, injúrias etc.) por conta de matérias jornalísticas envolvendo os atores. Expande-se um sentimento negativo contra a imprensa no Parlamento. A imprensa, é evidente, cumpre o dever de mostrar desvios e ilícitos, mas os implicados sentem a honra maculada quando veem sua vida devassada antes de serem condenados. Aqui, bifurcam-se alas e interesses. De um lado, setores políticos propensos a acatar medidas de controle da mídia; de outro, grupos que exalam um teor ideológico e cuja argumentação procura o escudo de um marco regulatório para o setor, particularmente no sentido de evitar a canibalização da radiodifusão pelas telecomunicações.
A dúvida persiste: a base regulatória implicará controle de conteúdo da matéria jornalística? Procurará apenas aplicar disposições legais, como a indicação constitucional para regionalização de parte dos conteúdos midiáticos? O receio da sociedade é que por trás do tal marco se possa esconder uma teia doutrinária, de matiz socializante e atrelada aos cordões de governos da região que sufocam a liberdade de expressão, como Cuba, Venezuela, Equador, Argentina e Bolívia.
Esse é o porém que, até o presente, os "reguladores" não conseguiram afastar do meio social.
JORNALISTA, É PROFESSOR TITULAR DA USP E CONSULTOR POLÍTICO E DE COMUNICAÇÃO
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