sexta-feira, abril 02, 2010

ROBERTO POMPEU DE TOLEDO

REVISTA VEJA
Roberto Pompeu de Toledo

Grandes personagens da MPB

"O melhor, em versos tão inesquecíveis quanto 
o ‘tu pisavas nos astros distraída’, é quando Caymmi
informa que ‘se a noite é de lua a vontade é contar mentira, 
é se espreguiçar’"

Noel Rosa é genial, não se discute, mas precisava sobrecarregar o garçom com tantas ordens? Em Conversa de Botequim há, por baixo, sete ordens disparadas pelo freguês ao garçom que teve a má sorte de estar de serviço naquele momento, a saber: (1) que o garçom lhe traga pão, média, guardanapo e água (consideremos o conjunto uma ordem só); (2) que feche a porta da direita com muito cuidado; (3) que apure com o freguês do lado o resultado do futebol; (4) que lhe providencie caneta, tinteiro, envelope e cartão; (5) que lhe traga palitos e cigarro; (6) que peça ao charuteiro revistas, isqueiro e cinzeiro; (7) que telefone ao escritório (até isso!) pedindo um guarda-chuva ao seu Osório.
Não apenas a quantidade é cruel. Pior ainda é que as ordens são quase simultâneas, disparadas à queima-roupa, na maioria desencontradas, exigindo o malabarismo de encomendar a média ("que não seja requentada") e ao mesmo tempo fechar a porta, perguntar o resultado do futebol e emendar com um telefonema para o escritório. Se bem cumpridas as tarefas, o que temos é um garçom obrigado a multiplicar-se em mais pernas do que num desenho do saudoso Glauco, um pobre coitado que sua, bufa, resfolega, resmunga, tropeça, se esfalfa, se estropia, se exaure. Para cúmulo dos cúmulos, no fim o freguês ainda avisa que vai pendurar a conta e pede ao garçom para lhe emprestar dinheiro. Essa música podia ser rebatizada como Hino do Desespero dos Garçons. Devia ser entoada nas assembleias e passeatas da categoria.
O João Valentão de Dorival Caymmi abriga na mesma personalidade o bruto e o sensível, o impiedoso e o lírico. É um bruto que para dar bofetão não pensa na vida, e faz coisas que até Deus duvida; mas tem seu momento na vida, o que acontece "quando o sol vai quebrando lá pro fim do mundo" e "se ouve mais forte o ronco das ondas". Eis que o cair da tarde o transfigura. Se até por volta das 18 horas era um, agora é outro. O João Valentão é no final das contas um homem equilibrado e bem-sucedido – depois da batalha do dia, em que cansou de dar sopapos, restaura-se à noite, deitado na areia da praia, naquele momento supremo em que "a morena se encolhe e chega pro lado querendo agradar".
Mas o auge da música ainda não chegou. O melhor, em versos tão inesquecíveis quanto o "tu pisavas nos astros distraída", de Chão de Estrelas (que Manuel Bandeira considerava dos mais belos da língua), é quando Caymmi informa que "se a noite é de lua a vontade é contar mentira, é se espreguiçar". Os braços do Valentão agora trocam os bofetões pelas espreguiçadas; e a vida de verdade, mansamente, malandramente, se refaz na delícia das mentiras.
O personagem do Trem das Onze, de Adoniran Barbosa, é um angustiado, um torturado, um estressado, um tipo ferido pela dúvida e fulminado pela divisão entre duas lealdades. Ele não pode ficar mais nem um minuto com a namorada porque senão perde o trem. E se perde o trem, desgraça! – é filho único, tem uma mãe que não dorme enquanto ele não chega. Estamos diante do oposto acabado do João Valentão. Durante o dia, no trabalho, longe de casa (ele mora em Jaçanã!), as pressões não foram tão fortes quanto à noite, quando se estabelece o horrendo conflito.
A música não conta a história até o fim. Não ficamos sabendo se ele realmente se despregou da namorada e correu para o trem ou fraquejou na última hora. Os mais românticos tenderiam para a opção pela namorada – vamos lá, coragem, ouse ser feliz. Mas, ao que tudo indica, venceu a mãe. E a namorada, como ficou? Ofereceu-lhe uma segunda chance? Adoniran não julgou necessário nos dizer, mas é forte a desconfiança de que seu personagem está destinado a morrer solteiro.
Numa de suas gravações de My Way, Frank Sinatra anuncia antes que vai cantar o hino nacional, e pede ao público que fique de pé. My Way celebra um tipo vencedor, que ao fazer um balanço da vida se orgulha de ter feito tudo o que tinha de fazer e, mais importante, do seu próprio jeito. Tem poucos arrependimentos, encarou tudo e ficou firme, engoliu o que tinha de engolir e cuspiu fora o resto. Muito americano. Que música popular brasileira poderia ser elevada a hino nacional? Não é fácil escolher. Aquarela do Brasil não vale; é hino nacional brasileiro para estrangeiros. Mas, se for para escolher hinos regionais, as três músicas citadas são fortes candidatas. Conversa de Botequim flagra uma perfeita manhã carioca. João Valentão retrata um cair da tarde em Salvador. Trem das Onze, uma noite em São Paulo.

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