quarta-feira, março 10, 2010

ROBERTO DaMATTA

Transparências de coluna


O ESTADO DE SÃO PAULO - 10/03/10



Já lhe aconteceu, querido leitor, esperar uma coisa e lhe ocorrer uma outra? Às vezes, exatamente o oposto do imaginado? Se você jamais passou por isso, ou você tem muita sorte ou não é humano.

Como todo mundo, eu tenho sofrido muito com essa dissonância entre o esperado (a fantasia, mas nem tanto) e o acontecido (a realidade, mas nem tão forte). Com 9 anos, meu tio Silvio me convidou para caçar onças no Pantanal. Era oficial do Exército e campeão de tiro e, assim que viu o sorriso entusiasmado no meu rosto infantil, perguntou, sério, que tipo de arma eu preferia usar. Com um ar casual, escolhi a pistola Colt 45 e deixei para ele o velho revólver Smith & Wesson 38. Com tudo combinado, aconselhou-me: faça sua mala discretamente e, pelas quatro e meia da manhã, esteja de pé. Seguiremos para o Galeão onde nos espera um avião da FAB. As onças ficam lindas refesteladas ao sol das cataratas.

Não dormi. No quarto-dormitório, ao lado dos meus quatro irmãos e tia Amália, rolei na cama até ouvir tio Silvio acordar. Em meio à obscuridade, vesti minha roupa de viagem e peguei a maleta. Ia saindo, quando dei com tia Amália sentada na cama me olhando severamente.

- Onde você pensa que vai?

- Vou caçar onças no Pantanal com tio Silvio!

- Que caçar onças que nada! Você vai é voltar para a cama. Esse Silvio tem cada uma...

Foi o fim da minha carreira como caçador e o começo de minha trajetória como usuário das frustrações desta vida. Naquela manhã, eu desconfiei que esse descalabro entre o querer e o ter, o pensar e o acontecer, iria me acompanhar para sempre. A transparência era a exceção que confirmava a regra de um ideal que raramente acontece. Isso que chamamos de felicidade.



Mesmo assim, até hoje eu penso que os outros vão seguir os meus roteiros e fantasias. Um amigo me disse que essas desarmonias explicavam o meu encantamento pelo mundo. Só com muito amor no coração é possível continuar acreditando na transparência deste mundo, sujeito ao peso do mal-entendido e dos múltiplos motivos de cada um dos seus sócios. Os homens fazem sua história ? dizia Marx ?, mas não nas circunstâncias que escolhem. Freud repetiu e investigou essa enigmática intransparência: a que jaz, como um zumbi, entre os nossos projetos conscientes e nossos impedimentos inconscientes. E o pior é quando eles chegam sem tia Amália, lá do fundo de nós mesmos. Como um outro intrusivo. Ou uma câmera oculta, reveladora de nossas falcatruas. Não é, Arruda? Não é, veteranos mensaleiros do PT?



Congratulo-me com a maioria dos ministros da Suprema Corte, que por quase unanimidade decidem manter o Arruda no seu spa, digo prisão, que seus defensores chamam de masmorra. Quando assim decidem, eles se comportam como magistrados e, muito mais que isso, como brasileiros! E é como tal que todos temos de agir. Pois, como profissionais, podemos tirar vantagem de tudo, mas seria isso ético quando vestimos nossas camisas de brasileiros?



A transparência começou quando o macaco nu desceu da árvore e entendeu que só poderia sobreviver se inventasse um mundo de fantasia e sonho, de música, poesia e ritual, de verdade e, preferencialmente, de ilusão. Drogado pelos deuses, leis, livros, fórmulas, fábulas e mitos que ele próprio inventou, o bicho-homem tem sobrevivido a tudo. E tem heroicamente ultrapassado as fontes de frustração que ele inventou para si mesmo.

No Reino de Janbom, onde, como mostrei na semana passada, até os milagres viram problema, a política engendra síndromes de onipotência, policiadas, contudo por alguns meios de reproduzir a realidade. Das fitas aos vídeos que os mostram roubando nosso dinheiro e, de quebra, revelam como o tal Estado centralizado tem como projeto enriquecer e aristocratizar seus altos servidores e jamais servir ao público e à sociedade.

Desmascarados pelas câmeras, o onipotente nega o inegável.



Uma história do Peru colonial, narrada pelo cronista Inca Garcilaso Graciliado de la Vega (1539-1616), antecipa o caso Arruda e outras psicopatologias do mesmo teor.

Ei-la:

Um conquistador chamado Solar, residente em Los Reys (Lima), tinha uma propriedade em Pachacamac. O capataz dessa propriedade enviou ao patrão, por meio de dois índios, dez melões ? frutos das primeiras sementes plantadas no Peru ? e uma carta. Quando entregou a encomenda aos índios, ele os advertiu que não comessem nenhum melão porque, se o fizessem, a carta descobriria e os denunciaria. No meio da viagem, um dos índios sentiu o desejo de provar a fruta do amo: queria saber o seu gosto. Seu companheiro, temeroso, disse que não deveriam fazer isso porque a carta iria contar. O primeiro colocou a carta atrás de um muro ? pois, assim, ela não poderia ver o que eles estavam dispostos a fazer e, sem vê-los, ela nada poderia fazer.

Lembro que índios do Peru não conheciam o que eram as letras. Imaginavam que as cartas que os espanhóis escreviam uns aos outros eram espécies de mensageiros ou espias que diziam, por meio de palavras, o que encontravam pelo caminho.

Comido o primeiro melão, decidiram que era conveniente emparelhar as cargas. Para ocultar o delito, comeram outro melão. Chegados a Lima, apresentaram oito melões ao amo. Este, logo depois de ler a carta, perguntou pelos melões que estavam faltando. Como os índios negaram a falta, ele assinalou que mentiam, pois a carta dizia que haviam sido entregues dez melões e que, portanto, eles haviam comido dois. Ao ver que o amo lhes dizia o que haviam feito escondido não discutiram com ele e saíram dizendo que era com muita razão que os espanhóis eram chamados de bruxos, pois sabiam grandes segredos.

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