quarta-feira, fevereiro 10, 2010

ROBERTO DELMANTO JUNIOR

Jurados imparciais e impunidade

FOLHA DE SÃO PAULO - 10/02/10


É preciso trazer ainda maior grandeza ao Tribunal do Júri, cuja competência deveria ser ampliada para julgar outros crimes, como o de corrupção


MERECEU destaque dos jornais norte-americanos uma decisão da Suprema Corte, de janeiro de 2010 (Estados Unidos versus Eric Presley), que, por 7 votos a 2, anulou um julgamento realizado por um Tribunal do Júri do Estado da Geórgia que resultara em uma condenação por tráfico. Isso porque o juiz presidente do Tribunal do Júri, durante a seleção dos jurados, não permitiu a presença do tio do acusado na sala de julgamento, alegando falta de espaço. A defesa protestou.
Afirmou a Suprema Corte americana que a garantia constitucional que assegura a todos um julgamento público, prevista na primeira emenda da Constituição norte-americana, estende-se à publicidade dos atos processuais, inclusive do procedimento da seleção dos jurados, ainda que não pudesse a presença do tio do acusado alterar o julgamento ou afetar essa seleção. Devia o juiz ter de alguma forma acomodado o sujeito.
Essa decisão nos reavivou a memória do que havíamos presenciado há mais de duas décadas quando assistíamos à seleção dos jurados em um Tribunal do Júri em Santa Bárbara, Califórnia.
O advogado e o promotor questionavam publicamente os candidatos a jurado, fazendo-lhes toda sorte de indagações para aferir a sua potencial parcialidade. Indagavam, por exemplo, se tiveram parentes próximos assassinados, porque, tratando-se de um caso de homicídio, uma resposta afirmativa permitiria à defesa recusá-lo por entender que a sua decisão seria parcial. O mesmo para a acusação, que indagava se algum parente próximo do candidato a jurado já fora preso pelo mesmo tipo de crime.
A possibilidade de questionar o candidato a jurado, com vistas ao caso concreto, é saudável e tem clara razão de ser., já que, ao absolver ou condenar alguém, o jurado não tem que dizer as razões de sua convicção, ao contrário do que ocorre, entre nós, nos julgamentos afetos ao juiz togado, que tem que motivar suas decisões.
Sob a ótica da legislação brasileira, esse tema nos chama à reflexão em um momento em que um novo Código de Processo Penal é elaborado. O procedimento adotado no Brasil para a seleção dos jurados é inócuo e insensato, vazio por completo. Procedimento que sempre vigorou entre nós, não só na redação original do Código de Processo Penal, de 1941, como também após a reforma do Tribunal do Júri feita pela lei nº 11.689/08.
Entre nós, embora possam a defesa e a acusação recusar até três jurados sorteados para compor o conselho de sentença, sem dar explicação (artigo 468), a nossa legislação não prevê que as partes façam uma única indagação ao candidato a jurado, ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos. Aqui, as partes têm acesso ao seu nome, sexo, idade e profissão, nada mais.
Ora, se não podem acusação e defesa questionar os candidatos a jurado, como teriam elementos para recusá-los ou aceitá-los, levantar impedimentos, confirmar uma suspeição ou incompatibilidade? Basta lembrarmos o exemplo de um julgamento por aborto, que no Brasil é afeto ao Tribunal do Júri. Saber a posição ideológica do jurado é fundamental, tanto à acusação quanto à defesa.
A situação é de fato constrangedora, havendo, em nome de uma pseudoceleridade, inadmissível sacrifício do direito das partes a um julgamento isento, sobretudo porque, como dito, não explicam os jurados os motivos que os levaram a condenar ou a absolver alguém. É a chamada convicção íntima.
Deparamo-nos, assim, com o absurdo de as partes terem o direito de recusar até três candidatos a jurado sem explicar o porquê, bem como levantar incompatibilidade, suspeição ou impedimento e, ao mesmo tempo, a proibição de fazer-lhes uma única indagação. As recusas dão-se às cegas, aleatoriamente, o que é uma contradição, uma insensatez. Trata-se de questão que diz com cidadania, na medida em que todo cidadão tem o direito de ser julgado por um tribunal imparcial.
E essa fatal contradição continua presente na proposta de um novo Código de Processo Penal (artigo 370), que se encontra no Congresso.
Esperamos que os nossos congressistas levem em conta esse tema, que é de fundamental importância para o nosso futuro democrático, garantindo às partes a possibilidade de publicamente questionar os candidatos a jurado, trazendo ainda maior grandeza ao Tribunal do Júri, cuja competência deveria ser ampliada em nosso país para julgar outros crimes, como o de corrupção e peculato. Não temos dúvida de que, com o júri, a impunidade que assola o nosso país iria diminuir.

ROBERTO DELMANTO JUNIOR, mestre e doutor em direito processual penal pela USP, é advogado criminalista. É autor de "Código Penal Comentado", entre outras obras.

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