Tudo o que é humano é complicado; ou melhor: não pode ser simples senão não é humano. O humano é impreciso, enigmático, ambíguo, pérfido, e acima de tudo, espesso como os nevoeiros e as peças de Shakespeare. É, como as máscaras de carnaval e as cebolas: múltiplo; e tem muitas caras, varandas, porões e infindáveis corredores. Tem também o abraço solar, a mão aberta e calorosa, o sorriso que cativa e o beijo apaixonado que promove a vida. Tudo nasce de uma mesma fonte da qual jorram igualmente ódio, inveja, coragem e ressentimento.
O transitório que, para Freud e Thomas Mann é tudo, promove a busca de consistência e do eterno. A saudade articula o instantâneo que é vida e a eternidade feita do nada. Os deuses nos invejam não só porque não existiriam sem nossas preces e oferendas, pois eles precisam de nós tanto quanto nós necessitamos deles, mas porque vivemos na transitoriedade e na dúvida do aqui agora, do ser ou não ser e do você e eu que engendram tenacidade, desejo, amor, lealdade e honra. Aquele “fazer ou morrer” da canção “As time goes by”. Não estamos aqui para brincadeiras e, diferentemente dos deuses, não temos tempo a perder. Exceto no carnaval...
No labirinto da vida, como na velha Creta de Teseu, ou se encontra uma saída ou se dá de cara com o Minotauro.
O caso Lula é exemplar. Ele tem mais popularidade do que qualquer outro presidente. Ademais, como Prometeu (sem trocadilho), ele roubou a mais decisiva contribuição à modernidade democrática brasileira — o Plano Real. Virou pai da revolução realizada pelo satanizado FHC que, como manda o paradoxal esquecimento humano, era estigmatizado pelo PT como “herança maldita”. Hoje, vendo o Lula como cidadão do mundo, fazendo abertamente uma campanha política que os juízes não enxergam, transferindo votos para sua Chefa da Casa Civil e rompendo com o dogma da transferência de votos que os marqueteiros — esses derradeiros matemáticos do humano — diziam ser impossível, julguei que o “cara” estava num mar de rosas. Mas eis que ele sofre um piripaque. Eu medito: só os seres humanos sofrem tais reviravoltas. Só eles podem ficar mal quando tudo aparentemente vai bem. Seria uma premonição, porque quem tudo promete não consegue decidir? Ou seria algo sem importância? Mas há mesmo algo sem importância quando se trata do humano? Os tigres de dentes de sabre, quanto mais matavam, mais lhes cresciam e afiavam os dentes. Entre nós, porém, quanto mais sucesso, mais o fracasso ronda nossa casa; quanto mais subimos, mas depressa descemos; quanto mais gozo, mais angústia e sofrimento. O amor faz sangrar como os animais sacrificados. E a morte, sendo o nosso destino, só se desliga da vida pela paixão que ilude e vira o mundo pelo avesso.
Foi só a partir da institucionalização do individualismo que começamos a dizer abertamente que “Estamos muito bem, obrigado!” Antigamente, os brasileiros eram proibidos de assumir toda e qualquer felicidade.
Não pegava bem ser feliz num mundo inseguro, desigual e injusto.
Todos iam de mal a pior, como aqueles personagens de Machado de Assis. Aprendi a insistir no “vou indo” e, quando muito, soltar um “mais ou menos” que, nos Estados Unidos, assustava meus amigos crentes no “the sunny side of the street” (no lado ensolarado da rua).
Se, para nós, sofrer é mais ou menos normal, para eles o direito à felicidade é um projeto possível, autoevidente e constitucional. Em minhas preces eu rogo pelo amor e pela felicidade; meus amigos americanos, porém, nascem com a certeza de tudo isso e o céu também.
Vejam vocês: o sujeito se livra de um apuro apenas para descobrir que passou de um problema para outro.
“Controlei finalmente o meu peso — disse-me a ex-gordinha Selma — só que não como mais!” O antropólogo e escritor maranhense, Nunes Pereira, de saudosíssima memória, era meu amigo e me visitava de quando em vez quando eu trabalhava num museu. Fazia minha alegria, porque não é fácil trabalhar no meio de pesquisadores, coleção de ossos, bichos empalhados e múmias.
Um dia, ele me contou o caso de um médico amazonense desgostoso com a depravação reinante na civilização da borracha que fazia de Manaus um centro de esbórnia.
Constatado o hedonismo da capital amazonense resolveu, como um personagem de Joseph Conrad, renunciar à fortuna e aos vícios confortáveis, para viver em simplicidade e pureza. Afastou-se de Manaus até chegar num derradeiro povoado, limite entre o civilizado impuro e o selvagem virginal. Ali, pegou uma canoa e remou em direção a uma casa de palafita situada no mais fundo da mata.
Ao aproximar-se, vislumbrou formas estranhas num barranco. De perto, discerniu enojado: era um caboclo que copulava com um mamífero cetáceo de água doce — uma bota! — no barranco. A bestialidade no meio da selva mais pura, como queriam ele e José de Alencar, era muito mais ofensiva do que as perversidades pagas dos lupanares de Manaus. Depois de tanto fugir, voltara ao ponto de partida. A fabula era sempre arrematada com um sorriso e o seguinte: Ele aprendeu que onde há o humano há o depravado e o perverso. Ou o desvio seria apenas um episódio na vida de um bicho não declinável mas que se pensa como tal?
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