Justiça existe para julgar
O ESTADO DE SÃO PAULO - 16/02/10
O julgamento que a sociedade faz de seu Judiciário não é ufanista. Ao contrário, reflete a disfuncionalidade de um serviço público preordenado a solucionar problemas, convertido muita vez em outro problema. E o pior: aparentemente insolúvel. Acostumada a um ritmo de prestações estatais e privadas impulsionado pelas modernas tecnologias, a coletividade repudia a invencível morosidade da Justiça.
O tema é objeto de preocupação do CNJ, que estipulou metas a serem atendidas pelos juízes, causa de não poucas polêmicas. Mas também constitui foco de atenção de estudiosos que aprenderam a se preocupar com a Justiça, conscientes de que todas as questões contemporâneas, cedo ou tarde, chegam aos tribunais.
A resposta clássica de grande parte do Judiciário para os reclamos de maior celeridade começa com a menção ao excesso de demanda. Efetivamente, os números da Justiça brasileira são inimagináveis para qualquer outro país. São milhões de processos que atravancam os fóruns e impedem a prestação jurisdicional com a celeridade desejável.
Em seguida, vem o costumeiro argumento em defesa do sistema judicial. Decidir é função muito peculiar, exercitada por um profissional técnico de elevada especialização. Julgar reclama reflexão, profunda análise e ponderação. Serenidade não combina com rapidez. Como corolário, a opção pela presteza contaminaria o conteúdo decisório, de maneira a comprometer o ideal da segurança jurídica.
Tudo isso é verdade e pode continuar a ser ofertado como resposta às críticas. Mas não resolve o problema de uma comunidade sequiosa de respostas oportunas às suas aflições. A regra é só recorrer ao Judiciário quando um direito é vulnerado. O demandante pretende ver restaurado o seu patrimônio jurídico. Depende do juiz para isso. Houvera outra opção e não se submeteria às vicissitudes de uma Justiça humana cada vez mais relativizada por inúmeros fatores.
É tamanho o inconformismo brasileiro com a anomalia de funcionamento do Judiciário que o constituinte derivado incluiu no já exaustivo rol dos direitos fundamentais a duração razoável do processo. A Emenda Constitucional 45/2004 inseriu um inciso 78 ao enunciado do artigo 5º da Carta republicana. Evidência de que o tempo da Justiça não se tem revestido de razoabilidade.
Será que não existem outras vertentes a serem exploradas?
Um exercício estimulante seria examinar se o Judiciário, atolado em papel, se limita ao que lhe é inerente ou não continuaria a responder por incumbências que, a rigor, são de outros Poderes.
A maior parte dos processos em curso diz respeito a cobrança de dívida fiscal. Representam milhões as execuções movidas pelo poder público, em suas várias exteriorizações, contra contribuintes inadimplentes. A cobrança de dívida não é atribuição jurisdicional. Poderia ser devolvida à administração pública, sem prejuízo da preservação do direito dos que se considerarem prejudicados, que recorrerão ao Judiciário se isso for imprescindível. Tal providência reduziria de imediato as falaciosas estatísticas de toda a Justiça brasileira. Muitos milhões de demandas delas desapareceriam se houvesse a subtração das cobranças desacompanhadas de embargos.
Seria racional essa providência, porque mera cobrança, ausente o inconformismo do devedor, não é lide. Não há pretensão resistida. É burocracia da qual, liberado o Judiciário, poderia melhor atender ao que é sua função: decidir litígios.
De igual forma, há milhões de processos em todo o Brasil da chamada Justiça da Infância e da Juventude, cujos problemas não são todos jurídicos. Ao inverso, quase todos são sociais, econômicos e culturais. Ressalvada a nobreza dos propósitos que inspiraram a chamada Justiça Menorística, é demasia colocar sobre os ombros do Judiciário a gravíssima problemática da infância brasileira, decorrente do declínio dos valores, da falência da família e da escola.
Outro encargo confiado à Justiça e causador de desgaste é a missão das execuções penais. Um olhar isento concluiria, sem sobressaltos, que administrar presídios não é tarefa do Judiciário. Este encerra a sua função ao aplicar a pena. Fiscalizar o seu cumprimento é obrigação da administração pública. Tanto que a Secretaria da Administração Penitenciária integra a estrutura do Poder Executivo.
É o governo que tem condições de adotar projetos mais eficientes de informatização e de controlar as fases da progressão, cuja inobservância, por despreparo burocrático da Justiça, gera tanta celeuma e não poucas rebeliões. Se a informática permite exação nos estoques de mercadorias, se qualquer grande estabelecimento comercial sabe verificar em seus depósitos a existência ou não de determinado produto e sua quantidade, qual a invencível dificuldade de se controlar o estoque de gente que é o sistema penitenciário?
Outra sugestão seria devolver os serviços estritamente judiciais a esse tão ignorado segmento formado pelas delegações extrajudiciais. No tempo em que os escreventes estavam subordinados aos tabeliães e registradores, havia maior eficiência no trabalho. O ambiente propiciado pelos antigos "cartórios" - hoje delegações - era favorável ao aprendizado, à disciplina, às noções de hierarquia e ao respeito devotado à missão de "fazer justiça".
Ao ampliar o quadro funcional, desprovido de uma política de carreira e sem escolas de formação dos servidores, o Judiciário criou um cenário praticamente inadministrável. A devolução desse controle a quem detém experiência multicentenária implicaria eficiência hoje intangível e liberaria o juiz para se devotar à única atribuição para a qual o povo o remunera: julgar dissídios.
Tudo é perfeitamente factível desde que haja ousadia e vontade. O produto será mais adequada observância da vontade constituinte: uma Justiça rápida e eficiente. Assim como o povo reclama e merece.
José Renato Nalini, desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, é presidente da Academia Paulista de Letras
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