terça-feira, fevereiro 16, 2010

ARNALDO JABOR

Viva o ‘tríduo momesco’!

O GLOBO - 16/02/10

Todo ano, meu artigo cai na terça-feira de Carnaval e, todo ano, me repito sobre o chamado “tríduo momesco”, como escreviam os jornalistas barrocos. Os bombeiros eram os “bravos soldados do fogo”, um incêndio era o “belo horrível” e “no desastre, o trem ficou reduzido a um monte de ferros retorcidos”. E o Carnaval era o “tríduo momesco”.

Acho o Carnaval nossa patuscada e grandeza. Como pode o mundo achar o Carnaval um desvio da razão, este mundo insano de Chávez, Irã, Iraque, de bombas “clean” contra bombas sujas? O Carnaval nos vê e exibe a matéria de que somos feitos, por baixo dessa mímica de “ocidente” que tentamos há quatro séculos.

Carnaval é feminino; o rock é de homem. O rock é guerra; o Carnaval é luxo e volúpia. As mulheres que flutuam no ar dos desfiles estão além do desejo real. Conquistadas, elas seriam reais, mas nosso desejo as quer como metáforas inatingíveis.

Talvez nosso Carnaval seja uma doença salvadora, uma epidemia de delírio de que o mundo precisa, além da guerra, da velocidade e do mercado cruel.

A “razão perversa” é a razão do Carnaval. Não a perversão como pecado, mas como a busca de uma civilização não civilizada, de retorno a uma animalidade perdida e pulsante.

A sacanagem das matas profundas é diferente das surubas calvinistas de Nova York, que inventaram o sexo torturado nas boates doentias e acabaram na aids. Nosso Carnaval mostra que o inconsciente brasileiro está à flor da carne. Quanto mais civilizado o país, mais fundo o recalque. Já imaginaram nossa cascata de bundas na Suíça?

Antes, o Carnaval começava no Rio com as marchinhas tocando no rádio desde dezembro, sob o canto das cigarras do verão. Na terça feira (hoje), eu ia com meu pai na avenida Rio Branco, ver a passagem das “sociedades” carnavalescas. Eram carros alegóricos cheios de rodas moventes, de estátuas de papel e massa, grandes e toscas carrancas, estrelas, sóis, luas cobertos de mulheres provocantes. Todo mundo cantava: “Chiquita Bacana lá da Martinica, se veste com uma casca de banana nanica!”. De repente, eu vi um carro imenso que era um despotismo de cachos de banana, onde dançava uma mulher lindíssima, completamente nua na proa. Os pais de família, as mães de família (todo mundo era de família) sussurravam: “Olha a Elvira Pagã!!”.

Elvira Pagã era apenas uma vedete mas, naquele ano remoto, ela queria “provar” alguma coisa. Algumas atrizes como ela (Luz del Fuego e outras) transcendiam o palco e viravam símbolos dos desejos reprimidos no coração das famílias. Eu via nas senhoras distintas a inveja infinita e escandalizada e no olhar de meu pai um brilho faminto que eu não conhecia. Elvira Pagã foi a precursora corajosa das mulheres nuas de hoje.

Hoje, as mulheres do Carnaval travam uma competição frenética de bundas e seios e eu me pergunto: o que querem elas provar? Querem nos levar para o fundo do mar como sereias, querem destruir os lares, querem mostrar que o sexo sem limites resolverá os problemas do Brasil?

Carnaval para mim era o cheiro. O lança-perfume era tudo: havia umas em vidro, frágeis como ampolas, mas o símbolo do Carnaval era o Rodouro Metálico que ejetava um fino jato de éter, gelando as costas nuas de odaliscas e havaianas que se torciam em risos trêmulos. O perfume flutuava pelas avenidas como uma aragem geral, uma nuvem de felicidade salpicada de pontos coloridos de confetes e rasgada por serpentinas. Hoje, com os corpos malhados, excessivamente nus, falta a celulite, falta o mal-jeito, falta o medo, a ingenuidade, o romantismo, falta Braguinha, Lamartine Babo, Mário Lago.

Naquele atraso, havia ainda uma preciosa alma brasileira, um ritmo humano de esperança que víamos no Carnaval e no futebol. Nas ruas, está a preciosa origem do Carnaval profundo. Lá, estão os desesperados, os famintos de amor, os malucos, os excluídos da festa oficial. O Carnaval de hoje parece uma calamidade pública musicada por uma euforia disputada pelo narcisismo de burgueses se despindo para a TV.

Em matéria de saudades, sou nacionalista.

Tenho vontade de botar uma camisa amarela, sair com um reco-reco e um pandeiro na mão e sumir no turbilhão da galeria da minha vida que já passou.

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