Eleições na democracia esvaziada
O ESTADO DE SÃO PAULO - 14/02/10
Dilma Rousseff foi escolhida candidata à Presidência por Lula porque o PT vivia um momento de "vazio". Essa foi a explicação do então ministro da Justiça para mostrar como essa candidatura emergiu como fator de composição dentro de um partido fragilizado e de alas divididas na onda do mensalão. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso deu vazão à expressão usada por Tarso Genro ao dizer que o perfil da chefe da Casa Civil carece de atributos de liderança. Por trás da explanação de um e da espinafração de outro reside uma particularidade da vida política contemporânea: um processo de esvaziamento. Os requisitos clássicos dos quadros políticos - experiência, liderança, capacidade de mobilizar as massas - nem sempre são considerados para efeito de escolha de candidatos. E as causas estão na própria crise que assola o sistema político, cuja feição assim se apresenta: partidos de identidades esgarçadas, representações apartadas da sociedade, Parlamentos com menos disposição para legislar; oposições frágeis e com discurso opaco e eleitores desmotivados. Verdade é que desde a queda do Muro de Berlim o jogo político se tornou menos contrastado. Os atores políticos reúnem-se num grande centro, onde se opera a clonagem das semelhanças.
O próprio conceito de democracia perde o antigo escopo, abrigando novos elementos. No século 19, por exemplo, o sufrágio era instrumento da democracia atomizada: os átomos eram conquistados um a um por candidatos com discursos distintos. Hoje a escolha se processa dentro de coletividades de pensamento homogêneo e por contendores bastante assemelhados. O processo atomizado de ontem é substituído por mecanismos impostos por uma democracia concebida e desenvolvida por uma teia de organizações intermediárias (sindicatos, associações, movimentos e mesmo alianças passageiras). Estes constituem os novos polos de poder, dentro dos quais os atores, alguns sem nunca se terem submetido ao crivo do eleitor, se abrigam para disputar campanhas majoritárias de envergadura. Sob a malha de interesses circunstanciais, composições artificiais e conceitos frágeis, os caminhantes de uma jornada eleitoral nem sempre são os mais treinados ou conhecem os percalços da política. Ingressam na arena a fórceps, são pinçados do bolso do colete pelos donos do poder ou mesmo dão um jeito de pular do Polo Norte para a Linha do Equador sem ao menos saberem a distância da rota. O "vazio" oceânico na política abriga não só a ministra Dilma, mas outras figuras. Veja-se o caso do presidente da Fiesp, Paulo Skaf, cuja pretensão de ser candidato ao governo de São Paulo pelo PSB o deixaria na risível situação de ter de optar pela cartilha da indústria, que representa, ou pelo socialismo partidário, que defende, por exemplo, a redução da jornada semanal de trabalho.
Como se pode aduzir, os perfis já não privilegiam parâmetros que, no antigo sistema, mediam os potenciais de cada qual. Agora, na nova ordem - nomeada de organodemocracia por Roger-Gérard Schwartzenberg -, os contendores passam a representar menos o que pensam e mais o conjunto de interesses e a prática de grupos, siglas amorfas e alianças que os abrigam. Se os ideários fenecem, os adversários tornam-se mais próximos. O mimetismo é ainda mais acentuado por conta de costumes que impregnam a agenda cotidiana de nossa política: o gosto pela improvisação, a flexibilidade para mudar de lado ("o jeitinho brasileiro", a infidelidade), a tendência ao exagero, a lei da maior vantagem e o usufruto do patrimônio público. Ora, sob essa leitura, a comparação entre os ciclos FHC e Lula terá mais firulas que diferenças no plano semântico. Dados a mais alcançados pelo ciclo lulista só foram possíveis em decorrência da base assentada pelo antecessor. E, quanto a rumos, as diferenças se darão na esfera do estilo. Quem acha que o País, com inflação domada, juros baixos, braços assistenciais fortes, tem de mudar a rota? No campo político, os arranjos - seja para a oposição, seja para a situação - deverão continuar a partir da aliança com o PMDB. O assistencialismo, simbolizado por programas de redistribuição de renda, será mantido por Dilma e ajustado pelo candidato da oposição. As grandes pilastras do edifício Brasil, portanto, serão as mesmas.
Haverá, claro, pontuação sobre os perfis. Em relação à candidata governista, percebe-se grande interesse em afastá-la do leito do pragmatismo, frequentado por Lula, para banhá-la nas águas ideológicas. Há núcleos comprometidos com a bolorenta cartilha do Estado controlador de tudo. Lula, porém, será o mestre de cerimônias dessa liturgia. E terá o poder para conter o ímpeto de radicais. Até porque imagina Dilma como a locomotiva a puxar o trem que construiu ao longo de oito anos. Não sendo petista histórica, teria condições de encarnar o pragmatismo lulista. Já do lado das oposições, o País poderá ver um candidato mais experiente e de perfil consagrado. Ocorre que a bagagem pessoal de José Serra, nos termos acima descritos, não terá mais o peso de outrora, canibalizado que será por paisagem mais abúlica e menos contrastante. A ressaca geral da política - intensificada por escândalos - abate os entes políticos, físicos e jurídicos. O desafio do governador será o de mobilizar a atenção do eleitorado para as diferenças entre ele e a adversária. Esse tipo de apelo, porém, não gera impacto nas margens eleitorais, funcionando mais como elemento de atração de segmentos racionais, sediados no meio da pirâmide social. Ademais, nos últimos tempos gigantescos laços foram jogados para todos os lados por mãos adestradas na arte da mistificação das massas.
Tanto o perfil de Serra quanto o de Dilma se enquadram no território do estilo tecnocrático. Tal imagem será fatalmente percebida pela comunidade política. Ambos terão chances de mostrar suas qualidades, capacidades e até deficiências. A indagação prossegue: o fator pessoal prevalecerá sobre a moldura?
Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP, é consultor político e de comunicação
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