Desindexar é preciso
FOLHA DE SÃO PAULO - 15/01/10
Vivemos uma espécie de adolescência econômica: vícios do passado conspiram contra nossa passagem a um estágio de maturidade
NOS ÚLTIMOS 30 anos, a economia brasileira experimentou duas fases distintas.
A primeira, na década de 1980 e na seguinte, até o advento do real, caracterizou-se por um crescimento medíocre e uma inflação exuberante, que poderíamos chamar de jabuticaba, porque, diferentemente de outros países em situação semelhante, só aqui todos os mecanismos econômicos funcionavam graças a um artifício que encontrou clima favorável nestes tristes trópicos: a indexação.
Naquela época, os agentes econômicos criavam regras e inventavam formas de conduzir o dia a dia sem o risco de uma explosão, embora a inflação fosse sempre crescente. Período de ilusões, a administração eficiente de uma empresa significava antecipar elevações de preços e ganhar nas oportunidades financeiras, em vez de obter resultados nas ações operacionais.
Os consumidores que podiam defendiam seus recursos com antecipações de compra. Os outros? Ora, os outros, sobretudo as maiores vítimas da inflação, os assalariados de baixa renda. A concentração de renda caminhava lentamente, ampliando o abismo secular entre os detentores do capital, defendidos pela indexação, e a maioria dos assalariados, abandonados à própria sorte.
A indexação reinava e mantinha a economia funcionando. Não importava a relação entre o poder de compra da moeda e o valor dos bens e serviços. Já não se trabalhava mais com a inflação passada ou presente. O que interessava é se os ajustes dos preços hoje permitiriam repor estoques amanhã. A inflação futura era o alvo.
Uma atitude corriqueira nos negócios era aumentar os preços em um dia para que alcançassem os índices do dia seguinte. Assim, a inflação passava a ser a que acreditássemos que seria. As crenças e consequentes ações dos agentes econômicos é que configuravam a inflação do futuro.
Essa situação levou os economistas a imaginar diferentes estratégias de estabilização. Processos heterodoxos, congelamentos e tantos outros transformaram o Brasil em laboratório de testes. Ao final, verificou-se que a receita não era mirabolante: como fazem os pais diante dos maus hábitos dos filhos, o Plano Real agiu para tirar a inflação da cabeça das pessoas, o que exigiu tempo e constância na condução da política econômica. Hoje pode-se dizer que a doença infantil da inflação foi debelada, o que permitiu retirar milhões de pessoas da pobreza e da miséria, incorporando-as aos mercados de trabalho e de consumo.
Vivemos, porém, uma espécie de adolescência econômica, com a permanência de vícios do passado que conspiram contra nossa passagem a um estágio de maturidade.
Apesar do sucesso do real, conquistas obtidas ainda não foram -e precisam ser- consolidadas. A leviandade renitente na condução dos gastos públicos faz recordar que o grande arquiteto da inflação é o Estado, que soube impor à sociedade as regras da estabilidade, mas se recusa, ele próprio, a fazer sua parte.
Outra mazela que persiste é a indexação: os contratos de aluguel (comerciais e residenciais) são reajustados pelo IGP-M, e as tarifas públicas (contas de luz, gás, telefonia, planos de saúde), pelo IGP. Como resultado, os preços desses serviços acabam indevidamente contaminados por um processo que lhes é completamente alheio, como é o caso da variação cambial, à qual o IGP está atrelado.
São indexadas ainda as mensalidades escolares, prestações de serviços e contratos que poderiam ser ajustados ou não pela livre negociação entre as partes, com base nas condições de mercado. Culturalmente, porém, preserva-se o vínculo com reajustes, o que ocorre também na questão salarial, na prática atrelada ao INPC. Para completar, o salário mínimo está indexado pelo PIB do ano anterior, mais a inflação medida pelo IPCA.
No atual quadro de estabilidade monetária, não há mais justificativa para qualquer forma de indexação.
Em nome do equilíbrio e do bom senso, toda e qualquer cláusula de eventual proteção de valores e reajustes de contratos deve ser resultado de negociação, com a prevalência das especificidades e das circunstâncias, e não dos índices.
Para que o Brasil possa ingressar e se manter na era de uma economia definitivamente consolidada e madura, é imperioso acabar com a indexação, que foi no passado, é no presente e continuará a ser no futuro um perigoso combustível para a inflação.
ABRAM SZAJMAN, 70, empresário, é presidente da Fecomercio-SP (Federação do Comércio do Estado de São Paulo), dos conselhos regionais do Sesc (Serviço Social do Comércio), e do Senac (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial) e do Sebrae-SP (Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas).
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