Ler modernamente
O GLOBO - 15/12/09
Livros têm seu lado diabólico. Ele se manifesta quando a gente acaba de lêlos.
Em princípio, tudo é muito simples: leitura terminada, estante com ele. Nada mais bonito do que fileiras de lombadas avançando pelas paredes.
Até quem não lê pode tê-las: lembro-me de um sujeito, e já contei essa história uma vez, que enfeitou seu apartamento na Vieira Souto com fileiras de estantes repletas. Não eram livros, mas lombadas de madeira pintada. Parece que o moço queria apenas dar uma impressão de cultura, sem correr o menor risco de ser exposto a ela.
Mas esse não é o seu problema, nem o meu.
Como é que a gente faz, quando se esgota o espaço nas paredes, mas o vício da leitura não tem fim? Especialmente no caso de um alienado viciado em literatura de segunda classe, quase tudo em inglês? Já cheguei ao ponto de oferecer doações, com frete por minha conta, a uma quantidade de sebos. Ninguém se interessou. Mas parece que há luz no fim do túnel: é o tal do Kindle, uma maquininha inventada pelos países civilizados. Parece um caderno de capa dura, fininho mas com uma tela do tamanho da página de um livro de bolso. Funciona parecido com um computador: você compra o livro pela internet na Amazon Books, e as páginas vão se sucedendo na telinha. Tem uma desvantagem: não dá para fazer anotações na margem nem sublinhar trechos notáveis.
Para mim, nenhum problema: não tenho qualquer necessidade de conversar com o que leio, como diversos amigos mais sábios do que eu. Sei que essa confissão liquida qualquer pretensão minha de ser confundido com um intelectual desses que vão para a cama com dois ou três volumes e passam a noite discutindo com os autores.
Mesmo assim, imagino que parte do prazer da leitura pode sumir. A relação tradicional com o livro não tem também um lado táctil, um gostinho de sopesar e folhear? O Kindle certamente preserva o prazer intelectual e emocional da leitura em si — mas não sentiremos falta de virar as páginas, de sentir seu peso? Tenho medo que seja meio parecido com sexo sem carícias inesperadas.
Tolos medos, com certeza. O que importa mesmo é a gente aprender a ler modernamente.
E dar por terminada a guerra das estantes aqui em casa — por falta de combatentes.
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