terça-feira, novembro 24, 2009

MÍRIAM LEITÃO

Oriente próximo

O GLOBO - 24/11/09


O presidente Lula disse que o Irã tem o direito de ter um programa nuclear para fins pacíficos. O problema é que o presidente Mahmoud Ahmadinejad não tem jogado limpo com a comunidade internacional. Em setembro, descobriu-se que o Irã tinha uma fortificação nuclear subterrânea escondida. Boas intenções, o Irã não tem, e por isso Lula deveria ter pedido transparência do programa deles.

O programa nuclear iraniano é uma dos pontos obscuros do nosso polêmico visitante de ontem. Não é o único. Sua visita provocou protestos e confrontos. Em parte pelas suas próprias atitudes. Ele administra um governo que atenta contra as liberdades individuais, que é fruto de uma eleição fraudada e manifesta opiniões que chocam a memória e a história. Apesar disso, não tem que ser impedido de visitar outros países.

Não é o único país do mundo a ter esses defeitos.

O problema é que para recebêlo é preciso ter a sabedoria de deixar claro que uma visita não representa um endosso aos seus métodos, suas ideias, seus planos nucleares.

Este mês, a quinta pessoa ligada aos protestos póseleitorais do Irã foi sentenciada à morte. De agosto até sua segunda posse, o número de pessoas executadas chegou a 115, a maioria criminosos comuns. No ano, foram 359. O governo Mahmoud Ahmadinejad quadruplicou as sentenças de morte. É o segundo país que mais executa. O primeiro é a China, onde o presidente americano, Barack Obama, esteve na semana passada.

A reunião de ontem entre o presidente Lula e o presidente Mahmoud Ahmadinejad durou duas horas e 45 minutos. Um exagero, o dobro do tempo dedicado ao presidente de Israel, Shimon Peres. Demorou porque o iraniano dá respostas longas, como se viu na entrevista coletiva. E pela dificuldade de comunicação. O presidente iraniano falava em farsi, era traduzido para o inglês e depois para português; depois a comunicação fazia o caminho inverso: português-inglês-farsi.

Ao final, os dois desceram da Torre de Babel e cada um saiu com uma vitória.

O presidente Lula viu ser incluído no comunicado conjunto o apoio à pretensão brasileira de ter uma cadeira na ONU, e o presidente iraniano viu o presidente Lula defender o direito do Irã ao desenvolvimento da energia nuclear para fins pacíficos. Claro, isso todos têm, mas para acreditar que o Irã tem apenas objetivos pacíficos é preciso ser ingênuo ou desinformado.

O Irã foi apanhado duas vezes mentindo para o mundo e para a Agência Internacional de Energia Atômica.

Em setembro passado, por exemplo, foi descoberto que a 32 quilômetros de Qum, ao sul de Teerã, havia uma fortificação subterrânea onde o Irã tinha uma instalação atômica, com capacidade de enriquecer urânio no nível necessário para a construção de bombas.

Em 2003, o então presidente, o moderado Mohammad Khatami, admitiu que o país tinha instalações nucleares escondidas e as submeteu então ao controle internacional.

Em 2005, quando foi eleito, Ahmadinejad defendeu um programa nuclear sem inspeção internacional. Depois aceitou a inspeção, mas construiu uma instalação secreta. Descoberto, disse que poderá mandar enriquecer o urânio fora do país, mas ainda não fez isso, e há temores de que ele já tenha estoque de urânio suficiente.

Diante de tudo isso, não está em jogo se ele pode ter um programa nuclear para fins pacíficos; é que o Ahmadinejad nunca quis ter um programa apenas pacífico. O esforço do Brasil tem que ser, junto com o Conselho de Segurança da ONU do qual quer ser membro permanente, insistir que o Irã dê o máximo de transparência às suas instalações nucleares para dirimir as razoáveis dúvidas que o mundo tem a respeito dele.

O Irã aumentou as execuções de criminosos comuns e as misturou com algumas execuções políticas.

Isso foi entendido como forma de atemorização da oposição que saiu às ruas contra as fraudes eleitorais.

Além disso, outros opositores têm sido condenados à prisão em julgamentos sumários de jornalistas, intelectuais e pessoas ligadas aos protestos contra as fraudes eleitorais.

Só um dado para derrubar todas as dúvidas sobre o fato de que a última eleição do nosso visitante de ontem foi fraudulenta: o Conselho de Guardiões reconheceu que em 50 cidades o número de votos excedeu o número de eleitores. Houve indícios fortes de fraude também na eleição no Afeganistão, país ocupado pelos Estados Unidos.

O Brasil não pode negarse a ter relações com o Irã porque é um governo repressor.

Nem mesmo porque sustenta posições inaceitáveis.

O primeiro-ministro Berlusconi declarou que o ditador fascista Benito Mussolini nunca matou ninguém, ofendendo também a memória e a história.

O comércio entre Brasil e Irã passa de US$ 1 bilhão, com os iranianos comprando US$ 1,1 bilhão e vendendo apenas US$ 14 milhões.

Há oportunidades de negócios e cooperação econômica.

Mas há duas coisas a se evitar num encontro presidencial com o Irã: apoio ao obscuro programa nuclear dele e apoio a certas opiniões esdrúxulas que ele defende.

Barack Obama foi à China.

País que censura toda a manifestação de pensamento, inclusive através da internet.

Mesmo assim, ele fez uma reunião com estudantes em que falou de liberdade e democracia. Foi censurado.

Mas fez seu ponto.

O presidente Lula quando foi à Líbia disse que o ditador que está no poder há quase 40 anos, Muammar Kadafi, estava no meio de um processo de democratização.

Negócios são negócios, mas esse tipo de endosso é desnecessário e inconveniente.

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