A segurança alimentar e a fome
FOLHA DE SÃO PAULO - 16/10/09
Pensem na rotina diária da típica pequena agricultora. Ela vive em um povoado rural na África subsaariana, Ásia ou América Latina e cultiva um pedaço de terra que não lhe pertence.
Levanta antes do amanhecer, anda vários quilômetros para pegar água e trabalha o dia todo no campo. Se tiver sorte, sua lavoura não será destruída por secas, geadas e pestes e conseguirá cultivar o suficiente para sustentar a família. Ainda que sobre algo para vender, não haverá estradas para o mercado mais próximo e ninguém com dinheiro para comprar.
Agora, imaginem a vida de um jovem em uma cidade a 160 km daquela lavradora. Ele não tem trabalho -ou tem um um trabalho que paga uma miséria. Vai ao mercado -mas a comida está estragada ou muito cara. Sente fome e, muitas vezes, raiva.
A lavradora tem alimento para vender e ele quer comprar. Mas essa transação não ocorre devido a forças complexas além do controle deles.
Enfrentar o desafio da fome está no cerne do que chamamos de "segurança alimentar": dar possibilidade aos agricultores do mundo para semear e colher safras abundantes, cuidar bem de suas criações ou pescar -e garantir que o alimento produzido por eles chegue aos mais necessitados.
A segurança alimentar não diz respeito só à comida. Representa a convergência de questões complexas: secas e enchentes causadas por mudanças climáticas, mudanças na economia que afetam os preços dos alimentos e ameaçam projetos de infraestrutura e picos no preço do petróleo.
Segurança alimentar diz respeito à segurança. A fome crônica representa uma ameaça à estabilidade de governos, sociedades e fronteiras. Pessoas famintas e subnutridas são tomadas por sentimentos de desesperança e desespero. Isso pode levar a tensões, conflitos e até violência. Desde 2007, rebeliões por comida aconteceram em mais de 60 países.
As falhas na agricultura em muitas partes do mundo têm impacto violento na economia global. A agricultura é a única ou a principal fonte de renda de mais de três quartos dos pobres do mundo. Quando uma parcela tão grande da humanidade trabalha arduamente todos os dias, mas, ainda assim, não consegue sustentar a família, o mundo inteiro é prejudicado.
O governo Obama vê a fome crônica como uma das principais prioridades da nossa política externa. Outros países estão se unindo a nós nesse esforço. Importantes países industrializados prometeram mais de US$ 22 bilhões durante três anos para estimular o crescimento econômico puxado pela agricultura. E, em 26/9, o secretário-geral das Nações Unidas e eu patrocinamos uma reunião de líderes de mais de 130 países para formar uma base de apoio internacional.
Dada nossa experiência em desenvolvimento, sabemos que as estratégias mais eficientes emanam dos que estão mais perto dos problemas, não de instituições ou governos estrangeiros a milhares de quilômetros dali.
E sabemos que o desenvolvimento funciona melhor quando é visto não como ajuda, mas como investimento.
Com essas lições em mente, nossa iniciativa de segurança alimentar será guiada por cinco princípios. Primeiro, sabemos que não existe um modelo único para a agricultura que seja adequado para todos. Portanto, continuaremos a trabalhar com países parceiros para criar e implementar seus planos.
Em segundo lugar, abordaremos as causas subjacentes da fome mediante investimento em tudo, desde sementes melhores até programas de compartilhamento de riscos para proteger pequenos agricultores.
Em terceiro lugar, nenhuma entidade pode erradicar a fome sozinha. Se as partes interessadas trabalharem em conjunto de forma coordenada, nosso impacto pode se multiplicar.
Quarto, instituições multilaterais têm alcance e recursos que se estendem além de qualquer país. Ao dar apoio a suas iniciativas, aproveitamos sua experiência.
Por fim, prometemos compromisso e responsabilidade de longo prazo. Como prova disso, investiremos em instrumentos de monitoramento e avaliação que darão ao público a oportunidade de ver as realizações.
Essa tarefa pode levar anos, talvez décadas, antes de atingirmos a linha de chegada. Mas empenharemos todos os nossos recursos e energias.
Enquanto perseguimos esse objetivo, manteremos o compromisso mais profundo com assistência alimentar emergencial para responder ao clamor por ajuda quando tragédias e desastres naturais fizerem suas vítimas.
Revitalizar a agricultura global não será fácil. Na verdade, é um dos esforços diplomáticos e de desenvolvimento mais ambiciosos e abrangentes já empreendidos por nosso país.
Mas pode ser feito. Vale a pena. Se tivermos sucesso, o futuro será mais próspero e pacífico que o o passado.
HILLARY RODHAM CLINTON é secretária de Estado dos Estados Unidos.
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