Carne dada aos vermes. Nos seus delírios intelectuais, alguns gramáticos históricos veem nas sílabas iniciais da expressão latina CAro DAta VERmibus a origem da palavra cadáver. Estou aqui a falar de coisa morta, como o latim, que as autoridades educacionais, de há muito, riscaram dos currículos escolares. Língua tão morta que nem me lembro mais o dativo plural de vermes. Fantasias eruditas à parte, há muito de realidade nessa versão semântica do vocábulo cadáver.
A propósito de velharias, os egípcios, preocupados com a preservação do corpo após a morte, desenvolveram, por artes até hoje misteriosas, a mumificação dos cadáveres.
Múmia passou a significar, porém, uma pessoa de ideias ultrapassadas.
Mas o que fazer com o nosso corpo após a morte? Esse símbolo do nosso aferramento à matéria, ao qual continuamos apegados a ponto de estabelecer-se uma discussão interminável sobre o seu destino. Cremálo? Sim. Ou não? Não, é muito chocante saber, embora não se veja, que o corpo de alguém está sendo queimado numa funerária municipal.
Que dizer, então, daquele ditador maluco que fazia pilha de inimigos para incendiá-los? E os vikings, que erguiam uma fogueira para assar os seus heróis, como o único fim digno de um grande guerreiro? Mas o que fazer das cinzas? Guardálas em uma minúscula urna em algum armário da casa ou espalhá-las sob as pontes de Madison? Pensemos em outra solução. Que tal embalsamar o corpo e, com sorte, mantêlo em casa? Certo estadista não teria conseguido essa proeza, ao levar o corpo de sua adorada para o apartamento em que habitava no exílio? Mas sua mulher era o mito de um povo e preservar o seu corpo era manter viva a chama do movimento político que o levara ao poder. Depois, parece um espetáculo macabro a retirada de todas as vísceras do corpo para embalsamá-lo.
Nem todos nós abrigamos, em nosso corpo, um viking, nem somos o ídolo de um povo. Freud não existe mais para diagnosticar a nossa manifesta necrodulia. O Conde Drácula também não poderá ajudar-nos a ressuscitar o nosso corpo à noite e nem levar-nos a visitar a Romênia ou a Pensilvânia. Bóris Karloff e Vincent Price estavam apenas encenando.
Deixemos a Europa e os Estados Unidos e voltemos ao país do Zé do Caixão.
Aqui, como dizia certo prelado, há tempos atrás, em entrevista sobre a doação presumida de órgãos: “O governo já tirou tudo do povo em vida, e agora quer tirar também os seus órgãos após a morte.” Como o poeta, no entanto, falo da vida e não da morte. Deixe as suas preocupações com o cadáver e passe a sentir o drama daquele que perdeu a luz do dia e que pode voltar a ver; visite uma clínica de hemodiálise, para ver um homem com a vida pendurada em uma máquina. Pense na função social do ser humano e abdique desse individualismo feroz, que o faz não abrir mão de nada, nem mesmo de seu cadáver.
Você não vai levá-lo para o além.
Regozije-se com a ideia de abandonálo, ele que aprisionou o seu ser por bom período e que, talvez por isto, mereça mesmo decompor-se. Você vai, enfim, libertar-se dele. Faça-o por inteiro, para não tê-lo, do outro lado, como ponto de referência.
Se o corpo do morto, aqui, ainda pode ter alguma serventia, que façam dele bom proveito. Se ele nada mais valerá para você, mesmo que queira, conforte-se com a certeza de que servirá, ainda, para outros. Se o quer tanto, preserve partes dele em alguém, como algo de você que restou nesta terra e que estará propiciando felicidade a pessoas tão sofridas.
Afora essa opção, seu corpo só poderá transformar-se em cinzas, ser mantido por algum tempo eviscerado pela embalsamação ou completamente comido pelos vermes. De todos os modos, irremediavelmente violado em sua integridade. Não doar órgãos só trará proveito à plenitude da orgia dos vermes. Recuse-se, sim, a merecer servir-lhes de repasto pela sua falta de solidariedade humana.
Subtraia-lhes partes de seu corpo para oferecê-las a quem certamente lhes dará destino melhor. Lembra-te, homem, de que és pó e ao pó tornarás (Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris).
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