Devolvam os trópicos
O GLOBO - 30/08/09
Ou não saio. Assim que jogo o cobertor para o lado e tento erguer-me, sou paralisado por uma onda de frio. Ainda estremunhado, tenho um sobressalto. Sem me lembrar como ou quando cheguei, estarei em Berlim, de janela aberta? Não, estou em casa mesmo e faz um frio do cão. Percebo que sair sem proteção adicional é uma temeridade e me enrolo num cobertor, para empreender a perigosa travessia até o armário, onde pego um esquecido moletom, que envergo às pressas. Pronto, eis-me de moletom, diante do computador. Devo estar parecendo o roupeiro uniformizado da delegação brasileira aos Jogos Olímpicos da Terceira Idade. Penso em conferir minha aparência no espelho, mas a prudência prevalece e não abandono o teclado. Esfrego uma mão enregelada na outra, agito as pernas para aquecer-me. Não, não estou em Berlim, mas a diferença é que lá as casas são aquecidas e aqui não. Lá eu andava dentro de casa de bermuda e sem camisa, aqui tenho de andar de moletom. Será, Deus meu, que as embananações climáticas vão piorar mesmo e daqui a pouco vamos ter de encomendar uma lareira? Fico pessimista, ao rememorar, sem muita saudade, embates havidos com o frio, na vida airada que tenho levado. Sempre fiz de mim mesmo a imagem de um sujeito pacato e caseiro, mas, pensando bem, já vivi muitas aventuras. Recordo-me especialmente da valente Freamunde, cidade do norte de Portugal, perto do Porto. Lá estive, faz muitos anos, hospedado na casa de um grande amigo meu. Freamunde, esclareço aos que injustamente a ignoram, é celebrada como a terra dos capões, pois lá, por artes seculares, se produzem os melhores galos capões de todo Portugal, quiçá de toda a Europa. É de comover o orgulho com que eles se apresentam e declaram orgulhosamente: “Sou da terra dos capões!” – é bonito ver esse amor à própria terra.
Mas não fui lá por causa de capões, embora tenha desfrutado de um belo arroz de capão à moda da terra. Hoje sei que minha estada por lá foi em nome do progresso da ciência, porque enfrentei um dos piores invernos da história da região, com direito a nevascas e ventos uivantes, e descobri diversas partes do corpo que antes não sabia que tinha. Como o aquecimento não era essas coisas, a hora da verdade era a hora do banheiro e também compreendi a razão por que meus anfitriões se benziam ao entrar nele, pois requeria considerável fortaleza física e emocional. Ao deixar a cidade, despedi-me sugerindo que adotassem para a cidade, em trocadilho com seu nome, a alcunha jocosa de Fria Bunda. Eles acharam graça, mas não sei se a adotaram.
E frio parece bonitinho no cinema, mas quem já morou em país frio sabe a mão-de-obra que dá. A começar por neve, que geralmente emporcalha tudo e vira lama imunda ou gelo imundo, em que a gente escorrega o tempo todo. Em Berlim, primeiro mundo, vários amigos meus, todos de classe média, subiam quatro ou cinco andares (elevador por lá não é tão universal assim), carregando o carvão para o aquecimento e desciam os mesmos quatro andares levando as cinzas para o lixo. No meio-oeste americano, onde também já morei, ajudei vários outros amigos a “invernizar” (winterize) suas casas e seus carros, ou seja, preparar tanto habitações como automóveis para enfrentar o inverno. Quanto aos carros, lembro bem, o camarada tinha de botar anticongelante na água do radiador, correntes nos pneus e mais inúmeras trampinzongas, para, assim mesmo, ficar meio ilhado em casa, às vezes semanas a fio. E, se conseguisse sair, tinha que vestir uns vinte quilos de roupa, de ceroulas térmicas e meias de meia polegada de espessura a capotões, cachecóis, chapéus ou toucas, protetores de ouvido e luvas. É tese comumente debatida que a baixa taxa de natalidade dos países frios se deve à trabalheira que dá tirar a roupalhada toda. Sei de brasileiros e brasileiras que, em diversas oportunidades, desistiram de chegar aos finalmentes porque, removido o saião, ficaram exaustos logo depois de extraída laboriosamente a primeira bota.
Mas não, nada disso vai acontecer aqui, é só um friozinho bobo, que passa daqui a alguns dias. Ou não? Antigamente não havia nada disso por aqui, mas hoje a toda hora se fala em temperaturas abaixo de zero, tornados, granizo e até furacões. Por que não frio polar? Considerando que alguns asseveram que, sob frio excessivo e desprotegida, empedra-se e cai a documentação masculina, corremos o risco de vir a ser também a Terra dos Capões, e não na área galinácea? Este frio estará querendo nos dizer alguma coisa e o que hoje é metáfora amanhã, por castigo, será literal? Cala-te, boca.
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