A tensão dialética e a crise dos estados
Mauro Santayana
JORNAL DO BRASIL - 06/05/09
O estado nacional, no modelo europeu do século 18, envelheceu, e sua história tumultuada, durante os últimos 200 anos, não bastou para restaurá-lo ou substituí-lo. Sua ideia reitora, a democracia, perdeu-se na associação à liberdade do capital, e nos adjetivos que a reduzem e debilitam o Estado. A democracia é um projeto sempre interrompido pelos seus inimigos e reanimado pelos seus defensores. Sua finalidade é a isonomia de todos os homens, em seu direito igual, direto e absoluto, de participar das decisões da comunidade, para o usufruto igual dos bens da vida. A ideia de fundo é a de que, como ocorre a cada um de nós, o Estado é viagem em busca da Terra da Promissão. Mais do que o porto de destino, no caso, o importante é navegar, e, para fazê-lo, manter o barco flutuando, esquivá-lo das tormentas, remendar as velas, manter firme o timão – para usar velha e insubstituível metáfora.
Muitos acreditam que a crise do Estado é a crise da economia capitalista e que, administrada essa, o Estado se salvará. As falhas da economia capitalista, porém, resultam da capitulação do Estado diante do poder econômico, que o ocupou e o destituiu dos instrumentos de controle e regulamentação. Ao salvar-se, o Estado salvará a sociedade. Em sua origem, os estados surgiram da necessidade de evitar a violência contra os fracos da comunidade a fim de garantir sua coesão e sobrevivência, mediante a justiça. A evolução dos estados resultou da oposição dialética entre as oligarquias e os desprotegidos, e o momento alto dessa disputa entre os poderosos e a plebe ocorreu no auge da República Romana, antes dos fatídicos triunviratos, que violaram o contrato histórico – e o fizeram contra os pobres.
Essa tensão sempre existiu, mesmo durante a aparente estagnação medieval. Ela explodiu depois do Renascimento nas revoluções inglesa (do século 17) e francesa (do século 18), mas o poder econômico acabou por impor-se. Nova consciência de justiça, expressa por muitos pensadores – e nem todos marxistas, como alguns pretendem – exige o retorno do Estado a seu objetivo de origem e está sendo assimilada pelos povos. Não será fácil a tarefa. Os banqueiros, depois do susto, recompõem seu poder, no mundo inteiro – e também aqui.
O desmoronamento do Estado se acelera com a desmoralização das instituições e de seus titulares. Seus poderes se encontram em questão no mundo inteiro, mais em alguns países do que em outros. Nos Estados Unidos, a partir da célebre decisão da Suprema Corte sobre os votos da Flórida, o Poder Judiciário sofreu golpe forte, do qual não se recompôs. Ainda agora, e de forma inusitada, um de seus grandes juízes, David Souter, decidiu renunciar ao cargo, ali vitalício, em plena maturidade intelectual, e, ao que se sabe, com saúde. Souter disse apenas que deseja regressar à sua casa, uma fazenda da família em New Hampshire. Homem de hábitos simples, que dirige seu automóvel modesto, e considerado de rigoroso comportamento ético, Souter já se sentia incomodado na Suprema Corte, desde a decisão do tribunal em favor de Bush, na contagem dos votos da Flórida. Só não renunciou, então, para não tornar os conservadores ainda mais poderosos no colégio julgador. Agora, talvez com a esperança de que Obama saiba substituí-lo, ele decidiu deixar o cargo. Nomeado por um republicano, o primeiro Bush, o juiz agiu com absoluta independência no caso em que o segundo Bush estava em causa, o que não tem sido frequente nos tribunais supremos.
A reorganização do Poder Judiciário, de maneira que seus membros representem o pluralismo da sociedade, e julguem com real independência, é uma das exigências para a recuperação dos estados. De nada adiantará a reforma dos outros dois poderes, se ela não conduzir a corajosas mudanças na estrutura da Justiça, a partir do cimo, que é o STF.
A cidadania tem reclamado maior responsabilidade dos presidentes da República e do Senado em indicar e aprovar os membros do STF. A sociedade deve ter também o seu tempo para, mediante as organizações sociais e a imprensa, examinar, discutir e opinar sobre as indicações, a fim de dar aos senadores a possibilidade de conhecer bem o caráter e o saber jurídico daqueles que aprovará ou não.
Todas as instituições do Estado se submetem ao Parlamento, que representa diretamente o povo. Talvez, por isso, ele será o primeiro dos poderes a ter a plena consciência de sua fragilidade, e legitimar-se, enquanto é tempo.
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