Ensaio sobre a nossa cegueira
Correio Braziliense - 20/04/2009 | ||||
Ah, uma coisa assim absurda deveria trazer duras consequências aos responsáveis. Alguém deveria ser punido. De preferência, quem teve a ideia e a implementou. Seria lógico. Mas se você apostar que nada irá acontecer certamente vai ganhar a aposta. Quem é que se preocupa com os portadores de catarata que não podem pagar uma cirurgia para retomar a visão? O que é o simples cego pobre quando comparado com o burocrata cheio de razão e poder “normatizante”? É um caso pontual, mas emblemático. Ontem, o Correio exibiu reportagens sobre como o dinheiro dos ministérios é generosamente destinado a organizações supostamente “não governamentais”, comandadas por aliados políticos dos ministros. É difícil arrumar dinheiro público para tornar mais ágeis as operações de catarata nos pobres, mas é fácil mobilizar dinheiro do povo para lubrificar os projetos políticos dos donos do poder. Assim como tampouco escasseiam os recursos para que deputados e senadores viajem com suas famílias ao exterior à custa do Tesouro. No que essas viagens ajudam o parlamentar a bem cumprir o mandato? O que tais passeios têm a ver com a tarefa de representar o eleitor no Congresso Nacional? Nada. Uma coisa é usar o dinheiro da cota de passagens aéreas para fazer andar o trabalho político. Outra é torrar o dinheiro dos impostos em atividades de lazer para Suas Excelências. E o senador, riquíssimo, que converteu suas passagens e gastou meio milhão de reais com jatinhos? E o outro senador, já morto, cuja viúva obteve do Senado, em dinheiro bem vivo, o saldo das passagens não utilizadas pelo falecido? Para essas coisas não falta verba. Mas se o sujeito é pobre, precisa operar a catarata e agora não tem mais o mutirão, que aguarde sentado. De preferência trancado em casa. Ouvindo rádio e tevê. Pois o governo decidiu combater o “populismo”. Já nos estados, virou hábito o candidato derrotado a governador assumir o cargo quando o vencedor é cassado pela Justiça Eleitoral. Nada contra as cassações. Que os maus políticos sejam removidos. O problema começa quando os tribunais eleitorais passam a ocupar o lugar do eleitor. O que isso tem a ver com a democracia? Nada. Não estou aqui a criticar os tribunais. Eles apenas cumprem a função constitucional de interpretar e fazer valer a legislação. Se a lei diz que o segundo colocado deve assumir o cargo nessas situações, que a lei seja cumprida. O problema está no Congresso Nacional, que assiste passivamente ao absurdo e nada faz. Por que senadores e deputados não votam em regime de urgência uma norma que determine novas eleições quando o titular perde o cargo? Qual é a dificuldade de fazer isso num país de voto eletrônico universal, e cujas campanhas eleitorais acontecem praticamente só na mídia? Mas isso significaria ampliar a soberania popular, aumentar o controle do povo sobre os políticos. E a coisa mais difícil de encontrar hoje em dia em Brasília é alguém sinceramente preocupado com o que o povo acha das coisas. Infelizmente, os nossos políticos parecem tomados por um espírito de gafanhoto. Comportam-se como enxames de gafanhotos. Por onde passam, não sobra nada. O normal seria eu escrever aqui “com as honrosas exceções de praxe”. Mas vai que amanhã a tal exceção aparece no noticiário mostrando que não é tão exceção assim? Este texto começou tratando de pobres que ficam cegos porque não conseguem se operar de catarata na rede pública. Pensando bem, a doença não é só deles. Há um surto de cegueira em Brasília. O poder não percebe que vem se descolando progressivamente do cidadão médio. Em parte porque não há uma força real a se contrapor – como fazia o PT no passado. Em parte porque os políticos acreditam piamente que o povo aceitará isso para sempre. O título da coluna eu tomei emprestado, é claro. Que o Saramago me desculpe, mas não achei um melhor. |
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