"Não vou esperar foder minha família toda de sacanagem, ou amigo meu", declarou Jair Bolsonaro na fatídica reunião ministerial de 22 de abril. "Vou interferir. Ponto final", proclamou ele noutro trecho. Não são manifestações obtidas de terceira mão. Constam de transcrição oficial levada pela Advocacia-Geral da União ao Supremo Tribunal Federal. As palavras do presidente valem por um strip-tease.
Antecipando-se à decisão do ministro Celso de Mello, relator do caso Moro X Bolsonaro na Suprema Corte, a AGU extraiu da gravação feita durante a reunião os trechos que considera relevantes para o inquérito em que o presidente é acusado de tramar a interferência política na Polícia Federal.
A transcrição é parcial. Mas o pouco que ela expõe já é suficiente para desnudar a versão oficial difundida pelo próprio Bolsonaro. "Eu não falo Polícia Federal" na gravação, dissera o presidente aos repórteres. Mentira. A menção ao órgão escorre dos lábios do presidente no instante em que ele se queixa do desempenho dos serviços de espionagem do governo. "Pô, eu tenho a PF, que não me dá informações", ralhou a certa altura.
Às voltas com a síndrome do que estava por vir, Bolsonaro também afirmara aos repórteres que o conteúdo da fita estilhaçaria a acusação de Moro segundo a qual ele ameaçara demitir o então ministro da Justiça se não pudesse trocar o chefe da PF no Rio de Janeiro.
Na versão de Bolsonaro, ele mencionara no encontro apenas preocupações com a sua segurança pessoal e a proteção de seus filhos e amigos. Queixa dirigida não a Moro, mas ao general Augusto Heleno, chefe do GSI, o Gabinete de Segurança Institucional. Lorota. O contexto e os fatos que se sucederam ao encontro não deixam dúvidas. Os alvos de Bolsonaro eram a PF e Moro.
No trecho mais importante da coletânea editada pela AGU, Bolsonaro soa assim: "Já tentei trocar gente da segurança nossa no Rio de Janeiro oficialmente e não consegui. Isso acabou. Eu não vou esperar foder minha família toda de sacanagem, ou amigo meu, porque eu não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha que pertence à estrutura."
O presidente prossegue, em timbre ameaçador: "Vai trocar; se não puder trocar, troca o chefe dele; não pode trocar o chefe, troca o ministro. E ponto final. Não estamos aqui para brincadeira."
Nesse trecho, Bolsonaro não cita a PF nem Moro. Mas também não há vestítigio de referência ao GSI, responsável pela segurança do presidente e de seus familiares. Não se ouve tampouco o nome do general Heleno. Confrontada com os fatos, a versão de Bolsonaro, ecoada no Supremo pela AGU, não para em pé.
Tomado pelas palavras, Bolsonaro não parece preocupado com a própria segurança ou com a integridade dos filhos. Inquieta-se com hipótese de surgimento de "sacanagem" com potencial para "foder" a "família toda" ou algum "amigo".
A inquietação com os amigos destoa do trabalho do GSI, pois a lei que prevê o fornecimento de segurança ao presidente e seus familiares não contempla a extensão do serviço de guarda-costas aos amigos do rei.
De resto, o que se verificou nos dias subsequentes à reunião foi uma incursão de Bolsonaro na estrutura da Polícia Federal, não no GSI. O presidente exonerou o direitor-geral da PF, Mauricio Valeixo. Fez isso com requintes de falsidade. Anotou no ato de exoneração que o delegado deixou o cargo "a pedido". Mentira. O Planalto Incluiu no documento a assinatura digital de Sergio Moro. Falsidade.
Nas pegadas do expurgo de Valeixo, sobrevieram o desembarque de Moro; a tentativa de nomeação do delegado doméstico Alexandre Ramagem, cuja posse foi barrada pelo Supremo; a troca de Ramagem pelo subordinado dele na Abin, Rolando de Souza; e a mexida no comando da superintendente da PF no Rio.
Tudo exatamente como ameaçara Bolsonaro na reunião: "Vai trocar [o superintendente do Rio]; se não puder trocar, troca o chefe dele [Valeixo]; não pode trocar o chefe, troca o ministro [Moro]. E ponto final. Não estamos aqui para brincadeira." No GSI, a cabeça de Augusto Heleno continuou sobre o pescoço do general. Não há registro de substituições no grupo que cuida da segurança de Bolsonaro e de sua família.
Afora a percepção de que Bolsonaro tentou mesmo colocar a PF a serviço do seu clã, a transcrição trazida à luz pela AGU revela que o presidente tem uma noção esquisita sobre a tarefa dos órgãos de inteligência do governo. Do modo como se expressou, o presidente parece associar esse setor mais à bisbilhotagem do que à coleta de dados estratégicos, úteis à tomada de decisões de um presidente.
Bolsonaro declarou: "Eu não posso ser surpreendido com notícias. Pô, eu tenho a PF que não me dá informações; eu tenho as inteligências das Forças Armadas que não têm informações, a Abin tem os seus problemas, tem algumas informações, só não tem mais porque tá faltando realmente... temos problemas... aparelhamento, etc. A gente não pode viver sem informação."
Nesse ponto, o presidente fez uma inusitada analogia familiar: "Quem é que nunca ficou atrás da... da... da... porta ouvindo o que o seu filho ou a sua filha tá comentando? Tem que ver pra depois... depois que ela engravida não adianta falar com ela mais. Tem que ver antes. Depois que o moleque encheu os cornos de droga, não adianta mais falar com ele: já era. E informação é assim."
Na sequência, Bolsonaro se diz preocupado com a "estratégia". Absteve-se de definir o que entende por estratégia. Limitou-se a ralhar e ameaçar: "E, me desculpe, o serviço de informação nosso — todos — é uma vergonha, uma vergonha, que eu não sou informado, e não dá para trabalhar assim, fica difícil. Por isso, vou interferir. Ponto final. Não é ameaça. Não é extrapolação da minha parte. É uma verdade."
O linguajar rastaquera, os modos rústicos e a ignição instantânea fazem parte do DNA de Bolsonaro. Mas os temas tratados na reunião do dia 22 de abril parecem ter aguçado os seus maus bofes. Em certos trechos, o presidente dirigiu-se aos subordinados como se estivesse fora de si. E sempre que isso ocorre, Bolsonaro não consegue esconder o que tem por dentro.
O excesso de irritação de Bolsonaro acabou produzindo material para um inquérito criminal. Resta agora ao presidente confiar na aposta que fez ao indicar Augusto Aras para o posto de procurador-geral da República.
Se Aras decidir que a investigação contra Bolsonaro deve ser arquivada, babau. Não importa a quantidade de evidências em contrário. Do ponto de vista jurídico, o assunto estará encerrado. É o que espera Bolsonaro. Para evitar que eventuais desdobramentos políticos lhe ameacem o mandato, o capitão se acerta com o rebotalho do centrão.
De concreto, por ora, apenas a evidência de que o rei se desnudou. O preço do apoio do centrão dependerá do tamanho da nudez.
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