Para as patrulhas, certos livros são tão nocivos que a mera presença deles corrompe as almas
Confesso: quando a pandemia começou, cheguei a pensar que as “guerras culturais” tinham chegado ao fim. Ou, pelo menos, a uma trégua. Você entende: com a mortalidade do vírus e as consequências económicas que ele traz, aqueles assuntos politicamente corretos seriam enterrados pela urgência dos temas adultos.
Ingenuidade minha. O mundo está cheio de gente desocupada. E o confinamento forçado não ajuda na saúde psíquica do pessoal.
Uma polémica recente no Reino Unido ilustra o ponto. Aconteceu com Michael Gove, um dos ministros do governo de Boris Johnson. Nesses tempos em que falamos cada vez mais via internet, revelando ao público os livros que temos nas estantes, o país ficou a conhecer melhor as preferências bibliográficas do cavalheiro.
Pasmo e horror: entre os seus livros, Michael Gove tem uma cópia de “The War Path”, de David Irving, e outra de “The Bell Curve”, de Richard J. Herrnstein e Charles Murray.
Para se entender melhor a dimensão do “crime”, David Irving é um famoso negacionista do Holocausto. Richard Herrnstein e Charles Murray, apesar de não terem o mesmo currículo de Irving, tentam explicar em “The Bell Curve” como certos grupos étnicos são geneticamente menos inteligentes do que outros.
A sentença foi rápida e fulminante: Boris Johnson tem no governo um negacionista e um racista. Os livros são a prova.
O caso divertiu-me numa primeira fase: o literalismo dos fanáticos é sempre um prazer perverso. Mas depois, olhando para a minha própria biblioteca, tentei encontrar exemplares problemáticos que, suspeita grave, já apareceram nas minhas transmissões via Skype.
Basicamente, não tenho perdão. Para começar, “The Bell Curve” está presente no meu covil, juntamente com outros trabalhos de Charles Murray. Não tenho nenhum David Irving; mas tenho obras de Robert Faurisson, que também milita na mesma escola negacionista.
Além disso, não há praticamente ditador nenhum que não esteja bem representado. “Mein Kampf” está em duas versões —inglesa e portuguesa. Os panfletos revolucionários de Lênin também cá estão —muito bem encadernados.
E, para não ir mais longe, tenho todos os discursos de Salazar, o ditador português.
Poderia argumentar, em minha defesa, que a posse de certos livros não transforma o sujeito em racista, negacionista, nazista, comunista ou salazarista. Quando muito, faz dele um leitor, um estudioso, um curioso.
Mais ainda: a única forma de entender a história e de desenvolver anticorpos para certas ideias malignas implica conhecê-las e confrontá-las.
São argumentos inúteis para quem regrediu mentalmente até a caverna do pensamento mágico. Para as patrulhas, certos livros são tão nocivos que basta a mera presença deles para que o feitiço corrompa as almas.
Isso significa que o melhor é não ter essas obras malditas. Ou, em alternativa, destruí-las sem hesitar, de preferência naquelas fogueiras vigorosas com que os nazistas queimavam a literatura decadente.
Engraçado: na ânsia de caçar fascistas, certas patrulhas nem se apercebem como são parecidas com eles.
João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.
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