Presidente tenta evitar risco de impeachment, mas atira contra o próprio coração no processo
No manual informal dos impeachments brasileiros, três condições são centrais para o impedimento de um presidente: falta de apoio no Congresso, uma crise econômica aguda e a perda de apoio popular.
A crise de governabilidade que Jair Bolsonaro agravou com sua condução do combate ao novo coronavírus já embutia os dois primeiros itens da pauta, mas mesmo adversários ferrenhos do presidente sempre notaram que os cerca de 30% de aprovação do eleitorado eram uma arma dissuasória potente.
Com isso, fica difícil compreender a decisão do presidente de provocar a mera ameaça de demissão de Sergio Moro (Justiça e Segurança Pública) em meio a negociações com o centrão, que visam criar um simulacro de apoio congressual e evitar votos para um eventual processo de remoção.
Ambos os movimentos atingem diretamente o dito terço do eleitorado que está com o presidente, faça chuva ou faça pandemia.
Que Bolsonaro queria ver Maurício Valeixo fora, isso não é novidade desde agosto do ano passado, quando removeu um superintendente da PF no Rio que sabia demais acerca de investigações envolvendo o clã presidencial.
Essa independência da PF, aliás, é um dos fatores da rixa entre Bolsonaro e Moro, cujo enredo maior diz respeito a 2022. O ministro é candidatíssimo a ser presidenciável, algo acerca de que o presidente se queixou com dois interlocutores nas últimas semanas.
Para o presidente, Moro só pensa em manter-se acima de degastes, e o bote poderá vir a qualquer momento.
Com a intenção de mexer na PF, Bolsonaro fez Moro repetir o teatro do ano passado e dizer que se Valeixo cair, ele sai. É uma saída cômoda para o ministro, que até aqui não deixou marca no cargo e parece ter se incomodado com o comportamento agressivo e negacionista do chefe ante a crise do novo coronavírus.
O problema é que Moro é uma câmara do coração do bolsonarismo. Extirpá-lo não só ameaça o órgão como cria um concorrente formidável na mesma faixa de batimentos.
Bolsonaro foi eleito por uma combinação de antipetismo e reação contrária ao sistema político alimentada por quatro anos de revelações escabrosas da Operação Lava Jato, que Moro personifica.
Como as pesquisas indicam, mesmo as revelações de condutas abusivas e os erros da ação não tiraram o apelo do ministro junto à população. É o mais popular da Esplanada.
Quando escolheu Moro ministro, após ser eleito, Bolsonaro criou uma armadilha perfeita. Se por um lado legitimou seu discurso moralizador, por outro tornou o ex-juiz numa figura quase indemissível. Assim, se por fim ficar no cargo, não é impossível que seu destino seja a vaga de Celso de Mello no Supremo Tribunal Federal em novembro.
O impacto de uma saída de Moro é potencialmente devastador, em especial se conjugado com a aproximação do Planalto com o centrão. Bolsonaro tem cerca de 30% de apoio do eleitorado, dado que o excedente que o levou a vencer em 2018 já se afastou ao vê-lo exercer o poder.
Desses, talvez metade seja caninamente fiel ao presidente. Esses eleitores são as mesmas pessoas para quem, no ato golpista do domingo (19), Bolsonaro pedia "o povo no poder" contra os "patifes" da "velha política".
Fica difícil aos aliados do presidente explicar o vídeo dele com Arthur Lira (Progressistas-AL), um exemplo acabado da tal velha política, em pleno congraçamento. Lira, afinal, é réu por corrupção no âmbito da mesma Lava Jato que levou Moro ao governo e ajudou Bolsonaro a estar no Planalto.
Isso fora as promessas de cargos para Roberto Jefferson (PTB), Waldemar da Costa Neto (PL) e outros luminares de escândalos políticos passados. Não é só a desmoralização de sua classificação do presidencialismo de coalizão como mero toma-lá-dá-cá: os personagens de suas críticas são os mesmos.
Com mais uma crise com Moro, o cenário fica complexo. A outra metade da base de apoio, menos ideológica e mais ligada ao repúdio legítimo às práticas da classe política, tenderá a seguir o ex-juiz para onde ele for.
Para um aliado de Bolsonaro no Congresso, a crise fora de hora evidencia o desmonte do desenho inicial do governo. Em dois dias, foram alienados seus dois ex-superministros, Moro e Paulo Guedes.
Na quarta (22), o titular da Economia teve de engolir, apenas com algum chiado sobre inexequibilidade, o anúncio de um plano com ares de planejamento militar dos anos 1970 para combater o desemprego com obras públicas.
Ambos, Guedes e Moro, por ora parecem ficar. Estarão tão enfraquecidos como o presidente, mas têm muito menos a perder que ele.
O isolamento do presidente, registrado antes da crise do novo coronavírus, já era flagrante. Governadores de estado articulados em frente, cerco judicial à sua família, Congresso tomando as rédeas da agenda reformista, tudo isso estava em curso.
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