A democracia é ameaçada quando um presidente usa a visibilidade e a importância institucional de sua cadeira para fazer carga contra outros Poderes, como faz Bolsonaro
Em meio à repercussão negativa do comparecimento do presidente Jair Bolsonaro a um ato de caráter golpista no fim de semana em Brasília, houve quem tentasse minimizar o gesto, dizendo que nada no comportamento do presidente configurava qualquer ameaça à democracia.
Do mesmo modo, há quem diga e repita que Bolsonaro até agora não fez nada que pudesse ser caracterizado como crime de responsabilidade – passível, portanto, de impeachment. Há até mesmo alguns mais exaltados que desafiam os críticos das atitudes do presidente a apontar um único gesto concreto de Bolsonaro contra o regime democrático.
De fato, a lei que rege o impeachment (Lei 1.079/50) é vaga o bastante para permitir múltiplas interpretações, a depender da disposição política do Congresso de afastar o presidente. Lá está dito, por exemplo, que é crime contra a probidade da administração “proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo” (artigo 9.º). Considerando que Bolsonaro já fez um comediante responder por ele numa coletiva de imprensa para humilhar os repórteres, já ofendeu a honra de mulheres jornalistas e já divulgou um vídeo pornográfico pelas redes sociais, entre outras peripécias, o tal artigo parece sob medida para ele.
Mesmo assim, não parece provável, ao menos neste momento, que Bolsonaro venha a sofrer um processo de impeachment por conta de sua conduta. Também, por ora, são escassas as chances de prosperar o argumento de que Bolsonaro cometeu crime em razão de seu clamoroso desdém pela saúde pública, em plena pandemia de covid-19, ao promover aglomerações em seus comícios fora de hora, como denunciam os autores de uma petição enviada ao Supremo Tribunal Federal para obrigar o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, a analisar um pedido de impeachment por eles encaminhado. A petição, que arrola vários outros supostos crimes de Bolsonaro, chega a requerer que os poderes presidenciais sejam transmitidos ao vice, Hamilton Mourão, para evitar que “o presidente da República prorrogue a reincidência delitiva de crimes de responsabilidade”.
Em geral, esse tipo de argumento tem sido tratado como exagerado pelos que relativizam a conduta de Bolsonaro. Para estes, a democracia não corre nenhum risco quando o presidente apronta das suas. “O presidente tem o jeito dele”, minimizou, por exemplo, o vice Mourão. Ademais, dizem, Bolsonaro nada fez contra o Congresso, o Judiciário ou a imprensa. “Bolsonaro é um democrata”, concluiu o ministro da Economia, Paulo Guedes.
Decerto Paulo Guedes, Hamilton Mourão e outros consideram que só há ameaça à democracia quando decretos presidenciais liquidam as liberdades e instauram a ditadura. O problema é que, quando se chega a esse ponto, significa que a democracia acabou faz tempo.
A democracia é uma construção permanente, e há várias maneiras de debilitá-la, muito antes da edição de decretos ditatoriais. A democracia é ameaçada quando um presidente usa a visibilidade e a importância institucional de sua cadeira para fazer carga contra outros Poderes, como faz Bolsonaro; é ameaçada quando militantes virtuais, alguns com assento no Palácio do Planalto, confundem a opinião pública com mentiras as mais diversas para desmoralizar a oposição e o contraditório, imprescindíveis para a saúde democrática; e é ameaçada quando o presidente sistematicamente criminaliza a política, sugerindo que a “vontade do povo” é exclusivamente por ele representada e deve ser atendida sem qualquer discussão.
Nada disso está expresso de modo explícito nos códigos legais brasileiros; logo, em tese, não constituem crime de responsabilidade. Mas tudo isso, quando somado e sistematicamente realizado, envenena aos poucos a atmosfera democrática, tornando aceitáveis até mesmo ideias liberticidas em nome da salvação nacional.
Assim, se e quando o tal crime de responsabilidade for seriamente invocado, será como reação natural à degradação da democracia – que, para o bolsonarismo, deve ser finalmente destruída para impedir que o inimigo continue a se interpor entre o “povo” e seu destino glorioso, anunciado pelo seu líder.
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