FOLHA DE SP - 28/04
Ataques irritam generais; sem oposição, elite no poder causa sururu autodestrutivo
O general bebe guaraná e diz que a comida estava muito boa, mas “a gente come qualquer coisa, cobra e farinha, se for o caso”.
“Cobra e farinha” talvez seja citação da frase heroica de Jerônimo de Albuquerque, capitão-mor da conquista do Maranhão, que combateu os franceses no século 17 (“somos homens que um punhado de farinha e um pedaço de cobra quando o há nos sustenta”, dizia, segundo a história de Capistrano de Abreu).
Agora são outros os capitães e os franceses.
A conversa fica um pouco mais aberta no fim do almoço. “E se essa gente uma hora for procurar os jovens oficiais, se essa gente for atrás dos capitães?”, pergunta o general, da ativa. Essa gente?
O assunto eram os “apoiadores radicais” de Jair Bolsonaro e seus ataques aos militares. O jornalista os chamou de “ala antiestablishment” do governismo; o general, de “os seguidores desse homem”, o influenciador digital Olavo de Carvalho, ideólogo de inspiração do bolsonarismo puro.
Entrincheirado, o militar se recusou a rebater os insultos do influenciador digital e a analisar a atitude do presidente em relação a Carvalho. Disse apenas que o país tem mais com o que se preocupar do que marcar passo com fofoca.
Quanto ao vice-presidente da República, Hamilton Mourão, primeiro alvo do ideólogo de Carvalho, o general disse que uma “voz ponderada [como seria a de Mourão] ajuda”, mas é preciso ser “econômico, prudente e leal nas manifestações, muito de vez em quando, na maioria das vezes em conversa particular”.
Mais impressionante mesmo foi a menção aos capitães, a uma possível tentativa de agitar quartéis, de baixo para cima. Para qualquer adepto da ordem democrática, militar ou paisano, essa tentativa se chama corretamente de subversão.
Não há notícia dessa tentativa de agitação. Mas o general que bebe guaraná e fala de comer cobra com farinha não foi o único militar a ficar irritado e preocupado com o ataque do bolsonarismo antiestablishment, de Carvalho em particular, aos generais.
Não se tratou de insulto apenas pessoal, mas de um tipo de ataque que, em situação de crise, pode ser tomado como tentativa de desmoralizar o comando das Forças Armadas, um meio insidioso de disseminar indisciplina.
Dois generais dizem que não há a menor possibilidade de a tropa ouvir agitadores, mas a mera cogitação de que alguém possa vir a criar caso nos quartéis já é motivo de irritação sombria.
É evidente que o país está destrambelhado quando um grupo de extremistas biruta, boca suja, ignorante, feroz e sinistro se torna capaz de causar tanto desarranjo, alguns deles aboletados no Planalto. Mas o destampatório não acontece apenas na copa e na cozinha digital do palácio.
No conflito com procuradores, certos parlamentares e bolsonaristas nas redes insociáveis, ministros do STF puseram os pés pelas mãos com um inquérito de exceção, o das “fake news”.
Noutro caso, o governismo tenta achar meios de decapitar ministros a fim de ter poder no Supremo. Os jacobinos do Ministério Público, por sua vez, querem levar a guilhotina para o Congresso ou além, faz tempo. A “ala antiestablishment” do governo esclarece de vez que vai perseguir quem quiser chamar de “ideólogos”, “esquerda”. Etc.
Não é tumulto causado por revolta popular, movimentos sociais ou oposição, que ora inexiste. A gente assiste bestificada ao sururu atroz da nova elite do poder, uma obra de desconstrução.
Vinicius Torres Freire
Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administração pública pela Universidade Harvard (EUA).
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