ESTADÃO - 21/09
Caixa 2 de campanha política é uma infração eleitoral. Mas, se se tornar crime, livrará de responsabilidade penal quem a tenha praticado antes da promulgação da nova lei, que não poderá ser aplicada retroativamente. Esse é o truque por meio do qual, agindo nas sombras, parlamentares espertos tentaram aprovar na Câmara dos Deputados, na segunda-feira, um dispositivo legal que garantiria a impunidade de quem não tenha contabilizado “doações” eleitorais. Essa manobra vergonhosa só não se concretizou porque foi denunciada, na undécima hora, por parlamentares atentos – e indignados – na Câmara e no Senado.
Agora, as duas Casas do Congresso, sob pena de aumentarem o desprestígio e a desconfiança com que são vistas, encontram-se diante do imperativo de trazer a público um amplo esclarecimento sobre essa manobra, urdida à sorrelfa. O primeiro-secretário da Câmara, Beto Mansur (PRB-SP), que presidia a sessão, fugiu do assunto quando interpelado pelo deputado Miro Teixeira (Rede-RJ) sobre quem era o responsável pela inclusão da matéria na pauta de votação. Sem maiores explicações, Mansur declarou a sessão encerrada.
A urgência com que se tentou concretizar essa cavilação em benefício da impunidade da prática generalizada do caixa 2 parece se dever ao fato de que é iminente a divulgação das delações premiadas de duas grandes empreiteiras que são alvo da Lava Jato, a Odebrecht e a OAS. Esses depoimentos envolveriam cerca de 100 senadores e deputados, de quase todos os partidos, tanto pelo recebimento de contribuições legais como pelo recebimento de propina e doações não contabilizadas. Estariam envolvidos nesses casos os presidentes do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), e da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Este já admitiu ter recebido doação da OAS, explicando que não a contabilizou em sua campanha porque a transferiu para a derrotada campanha ao Senado de seu pai, Cesar Maia.
Até onde tem sido possível reconstituir os tortuosos caminhos da por enquanto frustrada tentativa de garantir a impunidade de parlamentares com o rabo preso em transações financeiras obscuras, a adesão à ideia parece se estender aos comandos das principais bancadas, tanto da situação como da oposição. Segundo apurou o Estado, em reunião realizada na tarde da segunda-feira, Rodrigo Maia – então no exercício da Presidência da República devido à viagem de Michel Temer a Nova York – deu aval à tramitação da proposta, endossada também por Renan Calheiros.
Originalmente, a intenção seria destacar e acelerar a aprovação de um dos 10 itens do pacote anticorrupção proposto pelo Ministério Público, exatamente o que estabelece a criminalização do caixa 2, mas acrescentando um dispositivo que anistiaria os responsáveis por infrações realizadas antes da aprovação da nova lei. A providência não seria inócua como poderia parecer, dado o princípio da não retroatividade das cominações penais, uma vez que caixa 2 constituiu falsidade ideológica, pelo menos.
São os senadores e deputados que fazem as leis e a história do Parlamento. Deveriam, portanto, ter maiores cerimônias quando legislam em causa própria. Em setembro de 2015, o Senado ratificou a decisão do Supremo Tribunal Federal de abril do ano anterior que proibia doação eleitoral de pessoas jurídicas. O primeiro teste dessa lei está sendo realizado agora, no pleito municipal, e muitos políticos parecem convencidos de que aquela decisão – já então longe da unanimidade – foi um lamentável equívoco. Não porque constitui importante fator de moralização da vida pública, mas porque, assim sendo, deixa vulnerável “todo mundo” que usa e abusa de dinheiro para se eleger.
Assim, é impossível prever se essa manobra para garantir, no caso do caixa 2, a impunidade de quem “faz o que todo mundo faz” será abandonada em nome do decoro ou se, sob o manto do combate à corrupção que está sendo proposto pelo Ministério Público, a velhacaria cultivada nas sombras fará nova tentativa de desmoralizar o instituto da representação popular.
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