quarta-feira, setembro 21, 2016

Detalhes - ROBERTO DAMATTA

O Globo - 21/09

Pormenor é, muito frequentemente ou quase sempre, aquilo a que você, por algum motivo, não deu importância, como na invasão da Rússia pelos nazistas ou no petrolão


Dizem que o diabo está nos detalhes. Detalhes são tudo o que não foi observado ou o que não foi levado a sério ou considerado. Numa hipótese mais profunda, o detalhe é aquilo que não interessava enxergar: o fora de cena ou o “esquecido”. O realizado se faz no palco — às claras —, mas não se pode esquecer das ilusões ou maluquices. Sim, porque quando o mentiroso padrão recebe 400 votos a favor da sua cassação e sua volta ao papel de cidadão comum, essa rara correção surge como um terremoto — ou o detalhe — coisa do diabo!

Ou de Deus! Diz-me Mario Batalha que considera esses lugares-comuns bobagens insignificantes. E quando eu argumentei que é justamente esse o ponto ou a pista que leva ao delito e ao criminoso, como nas velhas novelas policiais de Agatha Christie, ele — radical — simplesmente foi embora.

O detalhe, para sermos mais precisos, jaz naquilo que o outro lembra e você esquece; ou, ao inverso, no que você “guardou” e ele não lembra. O pormenor (eis uma bela palavra...) é, muito frequentemente ou quase sempre, aquilo a que você, por algum motivo, não deu importância, como ocorreu na invasão da Rússia pelos nazistas ou no petrolão. Freud diria todo “esquecimento” tem múltiplos sentidos como tudo o que faz parte do universo dos símbolos — essa cadeia de sentidos que constitui o “humano” mas que não é exclusiva do gênero humano.

Quando eu roubei um pacote de giletes numa farmácia de Rio Largo, Alagoas, quando tinha 9 anos, eu obviamente me “esqueci” de que papai recebia uma conta do estabelecimento todos os meses, e esse momento de averiguação de gastos era algo dramático. De fato, papai se sentava à mesa da sala de jantar, convocava minha mãe e vistoriava com cuidado de fiscal do consumo as despesas mensais da farmácia, da padaria, da luz, da água, das lojas e do armazém. Ninguém da casa estava excluído desse ritual, e foi assim que foi liquidada minha microcarreira de ladrãozinho, na qual poderia — quem sabe — ter me “arrumado” ao lado desses lamentavelmente rotineiros nababos da república lulopetista.

Papai, que fazia barba com com navalha, inquiriu imediatamente se mamãe havia comprado aquelas absurdas giletes. Quando ouviu a negativa, telefonou para o dono da farmácia e, das mãos de Deus ou do balado do diabo, ouviu o cândido detalhe: “Vi seu filho ‘tirando escondido’ o pacote de gilete.” — É verdade? Os olhos de papai fuzilavam. — É! Respondi vermelho de vergonha e sem nenhuma desculpa. — Espero que isso jamais se repita. Ali eu descobri que há sempre um testemunho, uma prova, um outro olhar. No meu caso, esse pormenor consistia no fato de que donos de lojas vigiam suas mercadorias mesmo quando um garoto “inocente” as admira.

Esse foi um dos detalhes da minha vida. Hoje, eles são uma multidão. Como antropologista, eu costumo repetir que fazer antropologia social ou sociologia comparada, como diziam meus mestres, é aprender a discutir detalhes.

A semana que passou veio com a mais do que esperada denúncia do Ministério Público contra o Lula dos esquemas de corrupção que quebraram a economia e abalaram a espinha moral do Brasil. Do episódio devidamente televisionado, os jovens promotores de preto, como os “homens de preto” que caçam alienígenas na famosa série cômica americana, saíram os “detalhes” — as provas, evidências e pistas — que, desde os tempos do velho Sherlock Holmes, permitiam sugerir ou liquidar um caso. Afinal, a pista é um detalhe. É algo deslocado ou fora do lugar que aponta o crime ou o cerimonioso. No fundo, a pista é um símbolo intrusivo. Algo que não pertence àquele lugar, mas que ali surge como um figo podre ou um ato falho.

A segunda bomba veio com o “detalhe” do desaparecimento por afogamento do ator Domingos Montagner em meio às filmagens de uma novela na qual ele interpretava um herói que, milagrosamente, havia escapado das águas do Rio São Francisco, o mesmo “Velho Chico” que nomeia o drama. O pormenor aqui não é somente o da intrigante coincidência, mas o da morte sem aviso prévio. Essa partida do palco que abala fragilidade das rotinas que, em todo tempo e lugar, armam esquemas de vida construídos contra o inesperado. Aqui, é a comprovação de que somos mesmo feitos de vento. Nem o poder ou o sucesso garantem o inesperado. Esse detalhe que somente aparece depois que a caravana foi assaltada.

PS: Mais um detalhe. Temer ficou hospedado num hotel em Nova York pago, mas “esquecido”, pela entourage de Dilma. Mais uma prova da competência da gerentona inventada pelo ventriloquismo de Lula.


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