Longe, muito longe, há um abismo. Além dele, movimentos de agitação - revoltas? Manifestações? - que os vigilantes são encarregados de observar. Há dois tipos de vigilantes: os de visão curta, com lunetas simplórias, e os de visão longa, com lunetas intrincadas, de múltiplas molas, mecanismos de relojoaria, de lentes de refração e difração. O narrador possui luneta complexa, angustia-se com o peso de tal responsabilidade: "Não posso dizer que não fui prevenido dos riscos. Lembraram-me, com solenidade, que esse instrumento tão delicado se desajusta ao menor erro; que os erros são, às vezes, tão difíceis de detectar que a gente pode até nem se dar conta deles; que aqueles que o utilizam correm, assim, o terrível risco de passar toda uma vida no erro". A narrativa surrealista é de Pierrette Fleutiaux, A História do Abismo e da Luneta, Julliard, 1976. Poderia igualmente ser a história da semifinal entre Brasil e Alemanha.
Longe, muito longe, além da Copa das Copas, há um abismo. Para lá do abismo, grande agitação. O que será da economia brasileira? E dos empregos, dos salários, das conquistas dos últimos anos de parte relevante da sociedade? O que será do crescimento, da inflação? A presidente Dilma ergue a sua luneta e enxerga... o quê? A ansiedade dos pessimistas, o clamor dos críticos de sua atribulada política econômica, o frêmito do povo, tão próximo do abismo que a presidente não vê. Não porque tenha uma luneta simples, modelo corriqueiro. Sua luneta é complexa, mas ela não sabe encaixar as lentes, as molas, os mecanismos intrincados do instrumento de observação.
Vê a Copa das Copas e acha que o êxito futebolístico - dos outros, diga-se - tem paralelos com o êxito de suas políticas econômicas. É refratária aos argumentos de que, se os estímulos à indústria não funcionaram até agora, é porque estão equivocados. Não entende que, se a inflação está alta, é porque desviou o Banco Central da rota. Não percebe que o descuido com que trata setores importantes da economia nos ameaça a todos com riscos de apagão e de queda da atividade econômica em 2015. Não vê que a descrença em seu governo é generalizada e já atingiu a nova classe média urbana, que percebe com mais nitidez a perda de qualidade de vida e as incertezas sobre o futuro.
O que a presidente promete? Na melhor das hipóteses, mais do mesmo. Afinal, foi mais do mesmo que tornou possível a Copa das Copas. Mas o mais do mesmo é crescimento baixo com inflação alta, crescimento baixo com perspectiva de demissões na indústria, inflação alta com corrosão da renda, sobretudo da renda dos menos favorecidos. Na pior das hipóteses, é o mais do mesmo triplicado, a Copa das Copas das Copas, o abismo - pois ninguém é capaz de dizer onde tais políticas desembocam. Menos crescimento do que projetam os analistas? Inflação ainda maior que os quase 6,5%, o teto do nosso atabalhoado regime de metas?
Das plataformas de observação, nem tão longe do abismo, está difícil de falar da economia brasileira sem ser repetitivo. O que é preciso fazer para aprumá-la? Esse é o debate em suspenso, que deve se iniciar a partir da próxima semana, quando a Copa das Copas tiver terminado, quando a grande ressaca que é o Brasil atual nos vitimar a todos, impiedosamente. Simples ou complexas, de visão curta ou longa, o que as lunetas de hoje nos permitem enxergar é uma economia praticamente estagnada, com uma inflação tinhosa que abaixo dos 6% não cai, taxas de juros altas para conter o ímpeto dos preços e um câmbio administrado para impedir que resvalem para além dos 6,5% de inflação. A combinação não é sustentável, não é "equilíbrio ruim". É desequilíbrio perverso. Não há separação entre joio e trigo, tudo é joio, nada é trigo. Há que mudar tudo.
Só assim será possível encerrar da forma correta essa triste narrativa brasileira: "Minha luneta está quebrada: um grito de viva! Nunca mais precisarei calcular e predizer, vociferar e aplaudir, empilhar relatório sobre relatório para nossas torres de Babel". Quem nos dera...
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