O ESTADO DE S.PAULO - 06/07
Em sua queda de braço com os credores externos, Argentina não poupa despesa nem drama. "Argentina quer continuar a pagar suas dívidas, mas eles não vão deixar", apelou aos leitores do Financial Times.
Exortou milhares a tomar a praça pública contra os "abutres", como taxou os especuladores da dívida internacional. Contratou um pelotão de advogados de gabarito para levar sua causa até a Corte Suprema americana.
A Casa Rosada só não alistou o papa Francisco nem o dalai-lama, mas na semana passada, recorreu aquele balcão mor de indulgências ocidental, a Organização dos Estados Americanos (OEA).
Na pauta, um imbróglio que se arrasta há uma década entre Argentina e os "holdouts" (credores que não aceitaram reestruturar as dívidas). São os pequenos financiadores que nunca engoliram as perdas impostas após o mega calote argentino de 2001 e hoje ameaçam melar o acordo costurado entre o governo e o grosso de seus credores.
Tachados de abutres, por seu paladar para bônus podres, esses fundos são ruins de imagem, mas bons de briga. Em 2012 conseguiram a chancela de um juiz de Nova York, Thomas Griesa, que mandou o Tesouro argentino pagá-los. No mês passado, o Supremo americano lavou as mãos do pleito, deixando intocada a decisão de Griesa.
Mas já que "na Argentina todos os temas são políticos", nas palavras do chanceler Hector Timerman, o jeito foi recorrer à ação entre amigos. Embora crivada de rivalidades e desconfianças, a América Latina ainda se une frente às ameaças externas.
Por três horas os chanceleres trovejaram contra os abutres. Houve até homenagem a Thomas Piketty, o economista francês que se tornou popstar por seu libelo contra o capital como vilão da desigualdade internacional.
Os hermanos aplaudiram. Mesmo que quase todos os latinos façam questão de pagar em dia suas dívidas, demonizar os credores ainda traz dividendos políticas. Melhor para a tropa de choque de Cristina Kirchner, que usa o brado solidário para camuflar um dos maiores fracassos da economia mundial.
Após anos de inflação maquiada, ingerência e contabilidade arteira, a Argentina declarou moratória na dívida externa de mais de $100 bilhões. Foi o maior calote da história recente. Levou a um colapso econômico brutal que fez da Argentina um pária do sistema financeiro global.
Em 2005, o então presidente Néstor Kirchner, chamou os credores e, a ferro e foice, renegociou 75% da dívida vencida. Quem abarcou, levou 25 centavos para cada dólar emprestado, não em dinheiro vivo, mas em títulos novos, de longo prazo. Em 2010, outra leva se aderiu ao pacto, que passou a cobrir 93% da dívida.
Entra o juiz Griesa que, em julgamento histórico, autorizou os fundos rebeldes - detentores de 7% da dívida - a receberem integralmente. Ainda mais, vetou o pagamento a qualquer outro credor até que os holdouts fossem reembolsados. O Supremo ratificou a decisão.
A decisão revoltou os argentinos e preocupou os gurus da política financeira mundial. Com razão. Afinal, qual o credor que amanhã aceitará renegociar a dívida de um país se um grupelho de refratários, com bons advogados, pode invalidar o pacto?
Mas há um timbre de condescendência no desagravo latino à Argentina. Cristina perdeu a disputa no tribunal. Poderia ter convidados os desafetos para chegar ao bom termo. Ao contrário, apelou à tribuna das ruas e à confraria companheira.
Por trás da manobra argentina, há a ideia sedutora de que dívida é facultativa e sua renegociação, de praxe. É a política de não pagar para depois ver com fica. Se complicar, sempre há a mesa de reestruturação da dívida e depois, o brado retumbante. Quem não aceita é abutre.
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