O ESTADO DE S.PAULO - 15/07
Amigos,
vocês passaram o tempo todo da Copa falando de mim: Nelson Rodrigues pra cá, pra lá...
Antes eu era o pornográfico, o reacionário, agora virei técnico de futebol. E me citavam. Todos diziam que tinha acabado o nosso "complexo de vira-latas". Mas esse complexo que eu descobri pode existir também ao avesso (Freud nem me olha aqui no céu, com uma inveja danada). Mas ele não é apenas o pavor diante dos estrangeiros, a cabeça baixa, o "sim senhor", a alma de contínuo. Não. Este complexo aparece na submissão à FIFA, lambendo-lhe os pés como cachorrinhos gratos, nas arenas grã-finas. O vira-latas estava ali. Podemos botar uma fitinha cor de rosa no vira-latas que ele continua sendo um legitimo vira-latas, cheirando postes e abanando o rabo.
Para nossos jogadores ricos e famosos, o Brasil é a vaga lembrança da infância pobre, humilhada. O País virou um passado para os plásticos negões falando alemão, todos de brinco e com louras vertiginosas. Não são maus meninos, ingratos, não; mas neles está ausente a fome nacional "por um prato de comida", a ânsia dos vira-latas.
Já disse e repito que, antes, nas copas do mundo, éramos a pátria de chuteiras. Hoje somos chuteiras sem pátria. Fomos infeccionados pelo futebol europeu, mas pela metade; ficamos na dúvida se somos Pelé ou Dunga.
Nesta Copa, só o povo estava de chuteiras, para esquecer os escândalos que lhe mergulharam em cava depressão.
Foi diferente de 1950. Lá, sonhávamos com um futuro para o País. Agora, tentamos limpar nosso presente. Somos uma nação de humilhados e ofendidos, pois o país é dominado por ladrões de galinha e batedores de carteira. E a população queria que o escrete fizesse tudo que o governo não fez. Mas, era peso demais. O brasileiro não estava preparado para ser o "maior do mundo" em coisa nenhuma. Ser o maior do mundo, mesmo em cuspe à distância, implica numa grave e sufocante responsabilidade. Além disso, era um time de várzea.
Isso era o óbvio, mas foi ignorado. E quando o obvio é desprezado, ficamos expostos ao mistério do destino. E um dos fatos óbvios foi o endeusamento do técnico. Felipão era mais importante que o time. E ninguém é mais obstinado do que o sujeito que é portador de um erro colossal. O ser humano acredita mais em seus equívocos do que em suas verdades. O técnico é sempre contra a opinião geral. Em vez de orientar as vocações dos rapazes, Felipão achou que todos tinham de caber em sua estratégia. O técnico devia ser um reles treinador, quase um roupeiro, humilde diante dos craques. Mas o Felipão os tratava como garotinhos inseguros ou então parecia um "Mussolini" de capacete e penacho. A própria figura do Felipão era deplorável - nervoso e mal vestido, quase de pijama, era o retrato físico de nosso despreparo. O único jogador do "passado glorioso" foi o Neymar - Didi, Zizinho, Ademir guiavam seus dribles.
Quando o alemão fez o primeiro gol, sentimo-nos diante da verdade de que os próprios jogadores suspeitavam: éramos 11 solitários, nosso time era uma ilusão que parecia realidade por causa do Neymar. Nossa meta não era o gol; era o Neymar. Esse jovem gênio nos cegou e, com ele, acreditávamos que o Brasil voltaria a seus melhores dias. Mas, o Brasil nunca está em seus melhores dias. Não esperávamos uma vitória, mas uma salvação. Só a taça aplacaria nossa impotência diante da zona brasileira - era a nossa única chance de felicidade.
E aí começaram as interpretações dos idiotas da objetividade: por que perdemos? Tentam explicar a derrota como uma bula de remédio. Como se a derrota tivesse explicação; toda derrota é anterior a si mesma, ela começa 40 anos antes do Nada e vem desabrochar em nossos dias. Mas só podemos entender o que "não" houve. Atrás da derrota, estavam todos nossos vícios seculares: salvacionismo, milagres brasileiros, fé no improviso, vitórias abstratas e derrotas políticas.
Além disso, há entre nós e a loucura um limite que é quase nada. Enlouquecemos diante da Alemanha.
Nessa hora do jogo a loucura explodiu feito uma libertação. Isso. Nossa loucura não foi de Napoleões ou Neros, nossa loucura apareceu como um fundo desejo de parar, de ter sossego. Nos jogadores surgiu a ânsia do fracasso, como uma exaustão diante de tanta incapacidade.
Ao contrario do que disse o Parreira em 2006, de que "não estávamos preparados para perder", dessa vez estávamos todos preparados para a calamidade e secretamente sabíamos disso. Depois daqueles seis minutos em que houve quatro gols, o absurdo adquiriu uma doce, persuasiva, admirável naturalidade. Depois de 5 a 0, queríamos perder mais, queríamos nos espojar na derrota absoluta, sentíamos a doce nostalgia do aniquilamento. E aí, quem surgiu no estádio? O imponderável Sobrenatural de Almeida passou a dirigir o time como um técnico espectral, um fantasma trapaceiro. Dava até para ver que os alemães tiveram pena de nós, os anfitriões desmoralizados.
Até o Felipão fez autocrítica. Mas a autocrítica tem a imodéstia de um necrológio redigido pelo próprio defunto.
É isso. Sempre que vai estourar uma catástrofe, o ser humano cai num otimismo obtuso, pétreo, córneo. E perde.
Agora estamos com uma angústia épica, como uma víbora crispada dentro de nós.
E depois de perdermos para a Holanda por 3 a 0, vimos que não houve derrota - como haver derrota se não tínhamos time? O povo viu no fracasso a confirmação de sua sina de vira-latas e desceu as rampas arrastando os chinelos, como em 1950.
Agora, eis o nosso dilema: ou o Brasil ou o caos. O diabo é que temos a vocação do caos. O Brasil precisa ser feito e nós não o fazemos. O mal da cultura brasileira é que nenhum intelectual sabe bater um escanteio.
Mas ninguém cresce sem sentir o gosto amargo da vergonha. Sempre fomos condenados à esperança, ansiando por uma redenção pelo futebol; mas pode ser que agora a gente vá assumir a própria miséria, a própria lepra, e isso será nossa salvação.
É isso aí, amigos, e só.
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