O GLOBO - 10/04
De volta ao passado: os EUA deslocaram 12 caças F-16 para a Polônia e 10 caças F-15 para os países bálticos, aos quais se juntarão 4 Typhoons britânicos. Depois do longo parênteses do Afeganistão, a Otan retoma sua função original de defesa territorial coletiva. “Enxergamos a Rússia falando e se comportando mais como um adversário que como um parceiro”, declarou Anders Fogh Rasmussen, secretário-geral da Aliança Atlântica, enquanto 50 mil soldados russos concentravam-se na fronteira oriental da Ucrânia. François Heisbourg, que preside o Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, foi mais direto: “Ingressamos numa era de profundo e prolongado antagonismo com a Rússia”.
Vladimir Putin justificou a anexação da Crimeia invocando os “laços históricos” da região com a Rússia e o precedente da intervenção da Otan em Kosovo, em 1999. Um surpreendente e deplorável artigo de Anne-Marie Slaughter, ex-diretora de Planejamento Político no Departamento de Estado, repetiu os pretextos do Kremlin, fornecendo álibis para o crônico antiamericanismo de nosso Itamaraty. De fato, na esfera das leis internacionais, o paralelo apropriado para os discursos de Putin encontra-se nas razões brandidas por Hitler na hora da invasão dos Sudetos. A “proteção” da “minoria russa” na Ucrânia, como a da “minoria alemã” na Tchecoslováquia em 1938, cancela o princípio do Estado contratual, substituindo-o pelo da “nação de sangue”. E a menção a Kosovo não passa de um primitivo recurso confusionista.
As potências da Otan interromperam um massacre étnico na antiga província sérvia, algo que, vergonhosamente, o Conselho de Segurança da ONU negara-se a fazer em Ruanda, durante o genocídio iniciado exatas duas décadas atrás, em abril de 1994. Na Crimeia, ao contrário, nenhuma ameaça genocida pairava sobre a população russófona. A proteção dos albaneses étnicos de Kosovo não servia como pretexto para a anexação de territórios. A província tornou-se independente apenas uma década mais tarde, por decisão de um parlamento democraticamente eleito. A Crimeia, por outro lado, inscreve-se na coleção de territórios secessionistas criados pela geopolítica neoimperial russa, que abrange ainda a região moldava da Transnístria e as regiões georgianas da Ossétia do Sul e da Abkázia.
Um por todos, todos por um. A rocha sobre a qual se ergue a Otan é o artigo 5 do Tratado da Aliança Atlântica, que define um ataque contra um integrante como uma agressão contra todos. Na Guerra Fria, o compromisso implicava o engajamento militar dos EUA na hipótese de avanço de forças soviéticas em território da Alemanha Ocidental. Prudentemente, a URSS nunca pagou para ver – nem mesmo na crise de Berlim de 1961. Na década de 1970, os partidos social-democratas europeus, antes avessos à Otan, reconheceram que a aliança militar representava o escudo de segurança das democracias: uma garantia das liberdades políticas e dos direitos dos sindicatos. De um modo muito direto, a queda do Muro de Berlim testemunha o papel histórico desempenhado pela Aliança Atlântica. É essa herança que está em jogo hoje, diante de uma Rússia envenenada pelo revanchismo.
“Na hora da retirada soviética da Europa Oriental, o secretário-geral da Otan prometeu à Rússia que ela não deveria temer uma expansão da Otan além das suas fronteiras da época.” A acusação, explicitada por Putin em 2007, é compartilhada por quase toda a elite política russa – inclusive por Mikhail Gorbachev, o último presidente soviético. Documentos e depoimentos revelaram que inexiste uma resposta firme para a questão de saber se os russos foram vítimas de trapaça. Não se assinou nenhum acordo desse tipo entre 1989 e 1991, durante o desmantelamento do bloco soviético. Porém, figuras como o então secretário de Estado americano, James Baker, e o então ministro do Exterior alemão, Hans-Dietrich Genscher, ofereceram compromissos informais que podem ser interpretados dessa forma.
O problema reside na interpretação do que disseram os estadistas à luz das circunstâncias da época. No momento da reunificação alemã, o Pacto de Varsóvia ainda existia – e, portanto, não se colocava como tema prático o futuro geopolítico dos países do bloco soviético. Na mesa de negociações, a URSS aceitou a incorporação da totalidade da Alemanha na zona da Otan, com a condição de que não se estacionassem forças da aliança militar no território da antiga Alemanha Oriental. As potências ocidentais cumpriram o compromisso. Também deram a entender que não se projetava expansão futura da Otan, algo bastante abstrato numa conjuntura de rápida, turbulenta transição geopolítica.
O futuro chegou cedo, com a Guerra da Bósnia e a implosão da Iugoslávia, a partir de 1992. Naquele ponto da transição, um ano após a dissolução do Pacto de Varsóvia, os países do antigo bloco soviético ansiavam pela segurança geopolítica que o artigo 5 da Aliança Atlântica proporcionaria. Começava a expansão da Otan – e as palavras intercambiadas por Baker, Genscher e Gorbachev convertiam-se em objeto de estudo dos historiadores.
A expansão foi ancorada pelo Ato de Fundação Otan-Rússia, assinado em 1997, que continha três “nãos”. A aliança declarava não intencionar, não planejar e não ter motivos para instalar ativos militares significativos nos países incorporados após o colapso da URSS. Hoje, quando Moscou esgrime um discurso étnico que viola as leis internacionais e ameaçando invadir o leste da Ucrânia, os três “nãos” do Ato de Fundação transformaram-se na fumaça de uma perigosa política de apaziguamento. Nos países bálticos, sempre é bom lembrar, também existem “minorias russas”.
A Crimeia é o sinal de alerta. Mikhail Saakashvili, o chefe de Estado da Geórgia que experimentou a invasão russa de 2008, trouxe à tona o espectro da capitulação de Munique em artigo recente. Não vale a pena ignorá-lo.
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