O Estado de S.Paulo - 10/04
A atual situação da Argentina, caracterizada por crescente deterioração das contas públicas, inflação em alta, forte fuga de capitais e drástica queda de reservas externas, combina todos os elementos de uma enfermidade muito grave. A esses problemas se somam, ainda, uma intensa crise energética e déficits no balanço de pagamentos que, mesmo inferiores aos do Brasil, enfrentam um quadro de financiamento externo quase nulo.
Até recentemente, o País crescia a "taxas chinesas", impulsionadas pela bonança externa das commodities. O ponto de inflexão foi 2007, ano da chegada de Cristina Kirchner ao poder, quando o crescimento do gasto público, muito superior ao da arrecadação, praticamente eliminou os superávits primários obtidos nos anos anteriores. Ante a perspectiva de uma inflação na casa dos 20% ao ano, o governo recorreu ao controle de preços e à adulteração das estatísticas oficiais.
A despesa pública não parou mais de crescer, principalmente pela expansão dos subsídios à energia e ao transporte público, que permaneceram congelados ou com preços fixados abaixo dos custos. Hoje, esses subsídios atingem 5% do PIB e são em grande parte responsáveis pela geração de déficits primários acima de 4% do PIB.
As baixas tarifas de energia, resultantes de intervenções nos preços e subsídios, além de incentivar o consumo, levaram a uma situação de altíssimo risco no setor, com falta de investimentos, ocorrendo falhas frequentes no sistema elétrico, que se traduziram nos múltiplos apagões observados no último verão em Buenos Aires.
Situação similar é observada no segmento de petróleo e gás, em que as distorções de preços e o baixo investimento em pesquisa e exploração se somam ao estímulo ao consumo de veículos. O aumento na demanda e a queda na produção tiveram de ser compensados por importações cada vez maiores de gás natural e petróleo, com fortes impactos negativos nas contas externas.
Quando a gastança não pôde mais ser financiada pelo aumento da arrecadação, foram expropriados os recursos do sistema de fundos privados de aposentadorias, e o Banco Central vem sendo crescentemente utilizado como "caixa" do governo para cobrir os buracos do Tesouro.
O descaso com a inflação, o intervencionismo sem limites nos mercados, a piora no balanço de pagamentos e a situação fiscal cada vez mais frágil levaram a uma enorme perda de confiança, observada não só na queda do investimento, mas, muito mais preocupante no curto prazo, na enorme fuga de capitais e na galopante perda de reservas internacionais, que caíram pela metade nos últimos dois anos.
A maxidesvalorização do peso, o aumento da taxa de juros e o corte de alguns subsídios, de safra mais recente, não representam uma virada na política econômica, uma vez que permanecem basicamente intactos os controles de preços e o descontrole fiscal. A sua motivação básica parece ter sido a de estancar a sangria das reservas, a fim de evitar o colapso das contas externas, que deterioraria fortemente a situação política até o fim do mandato da atual presidente, em 2015.
Embora distante de uma situação de crise aguda, o Brasil se aproxima das eleições de 2014 com a casa em relativa desordem, afetada por elementos muito parecidos com os de nossos vizinhos: superávits fiscais em queda, populismo tarifário e consequente aumento dos subsídios públicos, inflação em alta, economia em desaceleração, déficits externos elevados, crise de energia, etc. Outro ponto em comum é a popularidade do governo em queda, com o risco de recorrer a remédios menos dolorosos, mas de efeito apenas temporário. A bomba estouraria, obviamente, em 2015.
Para mais detalhes, diante do grave momento vivido no Cone Sul, resolvi, com colegas daqui e de lá, apresentar ao Fórum Nacional do Inae, em 26 de maio, um livro contendo análise aprofundada do caso argentino e algumas lições para o difícil momento que vivemos. Uma versão preliminar estará disponível em breve em www.raulvelloso.com.br.
Nenhum comentário:
Postar um comentário