O GLOBO - 10/02
Este ano, farei 30 anos de BNDES. Como seu funcionário e como cidadão, tenho as minhas opiniões próprias e sei que, não raras vezes ao longo da sua trajetória, as críticas que o Banco recebeu foram justas. Há um elemento, porém, que é fator de orgulho para os que trabalham na instituição: a imagem em matéria de lisura pessoal no relacionamento com as empresas. Em quase três décadas na casa, nunca soube de nenhum funcionário da instituição em relação ao qual, em voz baixa, os demais colegas opinassem que fosse corrupto e propenso a favorecer A ou B por receber dinheiro de alguma empresa.
Há duas razões para o trato adequado com a coisa pública. Uma é a natureza das pessoas e a forma em que entendem a ética. A outra é o conjunto de procedimentos internos de uma organização, na qual, no caso do BNDES, destaca-se a existência de decisões colegiadas através dos diversos comitês e comissões que se tornaram parte da cultura da casa e foram incorporadas às suas normas.
Para que uma compra, por exemplo, seja passível de irregularidade ética numa empresa, a decisão muito provavelmente deve ser tomada por apenas uma ou duas pessoas ou por um círculo muito fechado. Se, porém, uma licitação envolve uma comissão formada por diversos indivíduos, de várias áreas, criteriosamente escolhidos e com reputação de honestidade, é praticamente impossível que a corrupção tenha chance de se esgueirar, pela mesma razão que é pouco provável encontrar um inseto em uma área dedetizada: o corrupto e os corruptores tendem a evitar lugares onde sabem que não têm espaço para agir.
A reflexão vem a propósito da repetição de escândalos na vida política do país, em diversos períodos, com os mais diversos partidos no poder e em todas as esferas administrativas de governo.
Uma análise desapaixonada da evolução do país ao longo dos últimos 30 anos mostrará grandes avanços. Em termos gerais e tratando das questões mais importantes, a partir de 1985 o Brasil se tornou uma democracia sólida, conquistamos a estabilização e as melhoras sociais são inequívocas: a redução da pobreza, o aumento da renda dos mais pobres, a elevação do salário mínimo, o Bolsa Família e a redução do desemprego estão aí a mostrar que o país se aproximou dos países desenvolvidos.
O brasileiro sabe que, em matéria de inflação, não vive na Suíça, mas tem razões para ter orgulho, por exemplo, do nosso Banco Central, como uma instituição séria e vigilante no controle da inflação, assim como do nosso sistema eleitoral, da urna eletrônica, da eficiência de algumas das suas instituições, da liberdade de imprensa etc. Onde, claramente, o país falha é na relação existente entre os partidos e as políticas públicas. A exposição das vísceras de como se operam algumas negociações entre os partidos para pressionar o Executivo no preenchimento de diversos cargos, nos diferentes níveis da Federação, feita recorrentemente a cada escândalo noticiado na mídia, indica claramente onde reside o mal a ser extirpado. Isso passa pela maior profissionalização do serviço público e por uma redução drástica do número de cargos ocupados por indicação política. Acostumamo-nos, com o passar dos anos, com coisas que invadem nosso cotidiano com ares de normalidade, mas é evidente que um partido brigar para indicar o diretor financeiro ou o responsável pela área de compras de uma estatal é um completo disparate em matéria de gestão.
Albert Camus dizia que “quando as elites traem, as sociedades morrem”. É preciso que nossa classe política esteja atenta para o significado da frase, porque a reforma da gestão pública é a grande tarefa pendente na nossa sociedade. O país avançou, há liberdade, temos inflação baixa e uma sociedade mais justa, mas a pilhagem de recursos por uma classe voraz ameaça se tornar um câncer e minar as bases da democracia. A solução passa pela redução do grau de discricionalidade do Estado, para que quem decide não tenha uma soma de poderes como a que é citada na epígrafe deste artigo. Quem compreender isso será o grande líder do Brasil futuro.
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