O Estado de S.Paulo - 27/11
Qualquer observador da cena brasileira não se recusará a afirmar o papel do Estado como categoria crucial da sua História, a começar por uma de suas marcas mais distintivas, qual seja a da conquista da unidade territorial, quando as circunstâncias, logo após a Independência, pareciam prometer um destino semelhante à fragmentação que veio a ser dominante no mundo hispano-americano. De igual modo, será obrigado a reconhecer sua presença na modernização econômica do País, em que não só estabeleceu as bases de sua industrialização, como também criou uma complexa legislação com a qual nacionalizou o mercado de trabalho e difundiu uma ética valorizadora do trabalhador, em que pese o regime de tutela a que foram submetidas as atividades da sua vida associativa.
Seu último grande feito na modelagem do capitalismo brasileiro foi de estilo fáustico, com a incorporação do oeste e da Região Amazônica à sua estratégia - inscrita no seu DNA - de expansão do poder nacional, tarefa que envolveu várias gerações, conduzida como política de Estado nos anos estado-novistas por uma agência criada para esses fins, a Fundação Brasil Central, processos bem estudados por Robert Wegner (A Conquista do Oeste, Belo Horizonte, UFMG, 2000) e João Maia (Estado, Território e Imaginação Espacial, Rio de Janeiro, FGV, 2012), além dos já clássicos ensaios de José Souza Martins sobre o tema. O empreendimento estatal na conquista desse vasto território para a ocupação econômica foi coroado pela construção de Brasília e, duas décadas mais tarde, pela rede de rodovias criada pelo regime militar, entre as quais a Transamazônica.
Mas esse capitalismo politicamente orientado, ilustração exemplar da categoria cunhada por Weber, fora surtos passageiros a que foram acometidas algumas de suas elites políticas - não apenas as de direita -, sempre conservou no seu horizonte a perspectiva de que sua missão, ao lado de maximizar o poder nacional, era a de fortalecer o mercado e tornar viável seu movimento expansivo. Não à toa a ida aos sertões do nosso hinterland, iniciada sob o signo da aventura, deixou em sua esteira o agronegócio, hoje um carro-chefe do capitalismo brasileiro e que, ademais disso, consolida nossas fronteiras nacionais e as tensiona no sentido de projetá-las à frente.
Antes, pois, do mercado sempre esteve o Estado, ao qual se deve atribuir a juvenilização do capitalismo brasileiro com o agronegócio, que se instalou em lugares dados como perdidos para os grandes empreendimentos mercantis. O mesmo movimento, como notório, presidiu a industrialização do País, com a mesma antecedência da ação norteadora do Estado quanto ao mercado, tanto no Estado Novo, no governo Juscelino Kubitschek e no regime militar, que os governos do PT, embora sem a força de empuxe dos anteriores, tentam reiterar. Andará mal informado, portanto, o mesmo observador se não atentar para a força do mercado na cena contemporânea brasileira, que tem atrás de si como guardiã e desbravadora de caminhos novos a força política de um Estado cada vez mais bem equipado para intervir em seu favor em busca de novas oportunidades de expansão.
A presença incisiva da dimensão do mercado entre nós se faz estampar no espaço que todas as mídias lhe dedicam, com noticiários e colunistas especializados na interpretação do seu movimento e, em alguns casos, numa ação pedagógica dirigida ao grande público a fim de aconselhá-lo a extrair proveito de oportunidades de ganhos econômicos. De outra parte, expandem-se os cursos de formação de especialistas, nas universidades e fora delas, dedicados às suas práticas, afora o fato, bem conhecido, de que economistas de várias tendências doutrinárias se alinham, hoje, entre as principais personalidades intelectuais do País.
A capilaridade da sua influência cultural tem sido de tal monta que encontrou formas expressivas no terreno da religião, em geral refratárias ao mercado, como se nota na Teologia da Prosperidade que viceja em cultos pentecostais. Mais recentemente, o processo de irradiação de sua influência encontrou uma forma nova de massificação com o fenômeno do empreendedorismo, para cuja sustentação concorrem políticas públicas estatais e ações da vida associativa empresarial, para não falar no papel das mídias que o estimulam.
Nosso observador a esta altura se volta para a dimensão da sociedade civil e se aturde com a multiplicidade de suas ricas formas. Confronta-se com um sindicalismo pujante, dotado de mídia própria e equipamentos sofisticados, com um associativismo empresarial robusto à frente do Sistema S e seus cursos de formação de mão de obra especializada. Ao deitar os olhos para a vida popular, tem diante de si uma malha incontável de associações de bairro, a organização do carnaval e seus milhares de dirigentes e operadores sociais - a trama densa da esfera pública dos seres subalternos. Nas grandes corporações profissionais reitera-se o cenário, a que não falta a SBPC com o núcleo Ciência Hoje dedicado à divulgação científica e à massificação da ciência para um público juvenil.
Nosso observador se confunde. O que falta para que este país dê certo, se conta com Estado, mercado e sociedade civil como dimensões fortes e bem aparelhadas? A resposta não está à mão, mas ele se esforça e descobre: falta a política como atividade aberta à prática de todos, que, aqui, se tornou atividade sob monopólio dos dirigentes do poder político, apenas ele dotado de autonomia para pensar e agir, vício antigo também instalado no nosso DNA. Talvez por isso, ao contrário do Chile, que acaba de renovar suas lideranças políticas a partir de movimentos sociais recentes, aqui, onde esses movimentos foram de maior porte, não há muito o que esperar das jornadas de junho.
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