O Estado de S.Paulo - 29/11
Quando Juca de Oliveira, o ator, tomou posse, ontem, na Academia Paulista de Letras, eu estava em Guapiaçu, interior do estado, falando na biblioteca municipal. Penúltima etapa da Viagem Literária da Secretaria de Cultura. Amanhã encerro o ano falando no Sesc de Piracicaba ao lado de Danilo Santos de Miranda. Depois, só ano que vem. Conheço Juca de Oliveira desde os tempos do TBC, quando o vi em A Semente, de Gianfrancesco Guarnieri, um dos grandes dramaturgos brasileiros que precisa ser revitalizado, e O Pagador de Promessas, de Dias Gomes. Depois, ele foi para o Teatro de Arena, trabalhou com Guarnieri e com Boal e eu o invejava por que ele namorava Joana Fomm, musa de minha geração. Juca está na Academia por ser autor, ator, militante político, a APL vem se renovando, se abrindo, mudando o sentido fechado da palavra que, antigamente sugeria um reduto fechado, inacessível. Agora é diálogo.
Os últimos meses passei no ar e diante de auditórios. Quem leu meu novo livro O Mel de Ocara entende bem o que digo. É a nova face do escritor brasileiro, escrever e falar, atravessando o Brasil, o oceano.
Extremos. Quarenta dias atrás saí de Paragominas, cidade com 60 anos de existência e desembarquei em Frankfurt para a Feira de Livros que o Paulo Coelho odiou, a 20 mil quilômetros de distância. Do nordeste do Pará a Belém foram 400 quilômetros, quatro horas de carro. Depois, Belém a São Paulo, três horas e meia de avião. Sete horas e meia e cortei apenas um pedaço do Brasil. Depois, atravessei o Atlântico e em 11 horas desci na Alemanha. Voltando, parti para Santarém. Jamais esquecerei a tarde em que, nesta cidade, ao crepúsculo, contemplei o encontro das águas dos rios Amazonas e Tapajós, um tentando engolir o outro, cada um resistindo, e aquelas duas manchas caminhando paralelas por quilômetros. Ou a manhã passada na praia de Alter do Chão, paradisíaca (perdoem o clichê) em uma ilha que, na cheia, desaparece, depois retorna. Conheçam antes que o turismo predador destrua tudo. Caipira que sou, admiro o tamanho deste nosso País e como o tempo e as distâncias acabaram relativizadas.
Muitas vezes penso: por que estou fazendo isso? Não deveria estar sossegado, lendo um livro na varanda? Indo ao cinema? Beirando os 80 tem sentido este ir e vir, vir e ir? No fundo, sou mais um repórter-cronista e quando me vejo num retão infinito como aquele que leva de Belém a Paragominas, atravessando cidades com nomes como Castanhal, Aurora do Pará, Irixuma, Irituia, Garrafão do Norte, Cachoeira do Piriá ou Mãe do Rio, me acalmo, desfruto e gosto. Mãe do Rio é o nome do rio, mas é também a cobra que pode tomar a forma de uma embarcação, devorando quem navega. Ou então seduzindo ao se tornar mulher encantadora, a mãe da água.
Foram etapas de minha participação num projeto só, a Feira Pan Amazônica. Fiz em sequência Belém, Marabá, Paragominas e fechei com Santarém. Este é um "país chamado Pará", escreveu o poeta Ruy Barata. De Belém a Paragominas, atravessei terras planas, sulcadas por leves montanhas. De tempos em tempo, árvores colossais, frondosas, indicavam: estou na Amazônia.
A rodovia, pista única, irregular, sem sinalização e sem uma só placa de quilometragem, é cortada por gigantescos caminhões (ou treminhões, como dizem no interior açucareiro de São Paulo). Se em Minas fazemos o cálculo por curvas, aqui podemos fazer por lombadas. São milhares. Leio as placas da estrada: café com água filtrada. Num posto, o banheiro indica: Femenino. Assim mesmo, com o E onde deveria ser I, talvez para lembrar de fêmea. Enfileirados, depósitos, barracões, galpões lotados de carrocerias enferrujadas.
O município de Paragominas tem a extensão do território do estado de Sergipe. Conhecido como cinturão verde, tem bosques, lagos, reservas florestais. "Quem chegasse aqui há vinte anos se assustava. O céu era encoberto por uma poeira vermelha, que aliada ao pó de serra e somada ao pó negro produzido pelos fornos de carvão tóxico, produzia a sensação de fog londrino", conta Paulo Chaves, arquiteto e secretário de Cultura do estado e um dos criadores da Pan Amazônica e seus salões.
"Havia em Paragominas 250 serrarias que tinham devastado tudo, e centenas de produtores de carvão vegetal. Metade da cobertura vegetal estava destruída. A cidade encabeçava a lista das 36 cidades brasileiras que mais desmataram. A partir de 2008, prefeitos montaram pactos com sindicatos de produtores rurais, associações de moradores, organizações ambientalistas, líderes comunitários e começaram a reverter a situação. Serrarias clandestinas foram fechadas, a produção de carvão desativada. Iniciou-se o reflorestamento e até agora 60 milhões de mudas foram replantadas. O desmatamento caiu, a cidade é modelo para programas de Municípios Verdes, inclusive com a adoção da Pecuária Verde, a que não desmata, nem devasta. O analfabetismo é mínimo na região. Os fazendeiros gostaram? Nem um pouco."
Momentos como este me fazem acreditar que o processo pode inverter. Sinto - e leitores me alertam - que muitas vezes me repito ao narrar estes encontros pelo Brasil. Mas repetirei sim, lembrando a noite em que falei em Paragominas, mediado pelo escritor Daniel Leite, autor de comovente livro A História das Crianças que Plantaram Um Rio.
Terminada uma breve fala, vieram as perguntas. E elas não paravam, o tempo foi mais do que estourado. Nesse momento, vimos na primeira fila uma mãe insistindo com o filho de oito, nove anos: "Vamos embora, se não perdemos o ônibus". E o menino: "Não vou, vamos ficar mais um pouco, estão contando histórias". E a mãe, preocupada: "E se a gente perde o ônibus ?". O menino, olho no palco, respondeu: "A gente vai a pé". Sabe-se lá quanto andariam na noite escura. Quase disse ao menino: fique, te acompanharei a pé, contando outras histórias.
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