O GLOBO - 31/10
Chega a ser paradoxal o kirchnerismo ganhar na Justiça do Clarín quando acaba de ser castigado pelos eleitores nas eleições parlamentares de domingo
A derrota do Grupo Clarín na luta judicial com o governo de Cristina Kirchner em torno de uma legislação draconiana, a Lei de Meios, é apenas um capítulo — embora possa ser decisivo — de uma longa história de sufocamento da imprensa profissional argentina. Não é um fato isolado, mas parte de um projeto de garroteamento do jornalismo independente, aplicado já há algum tempo.
Ainda com Néstor Kirchner na Casa Rosada, onde tomou posse em 2003, generosas verbas publicitárias oficiais passaram a ser manipuladas para favorecer empresários de comunicação “amigos”. Há copioso material levantado por auditores, publicado em reportagens, em livro e divulgado em denúncias pela oposição sobre o crescente gasto de milhões de dólares em dinheiro público com esta finalidade.
Em 2010, por exemplo, ano da morte de Néstor e com a presidente Cristina K. em campanha para a reeleição, a emissora de TV aberta Canal 9, simpática ao kirchnerismo, foi presenteada com US$ 18 milhões, ou 67,5% de toda a verba publicitária. Há incontáveis exemplos. Como o do jornal “Pagina 12”, outrora um marco na mídia impressa do país, receber em publicidade oficial US$ 4,7 milhões, quase o mesmo que o “Clarín”, com uma diferença: vendia apenas 10 mil exemplares diários, contra 300 mil deste último. Toda esta operação segue paralelamente à montagem de extensa rede de TVs e rádios públicas.
Outra arma da Casa Rosada é a Papel Prensa, única produtora de papel de imprensa do país, em que estão associados o grupo Clarín, o La Nación — outro alvo do kirchnerismo — e o Estado. Pois em dezembro de 2011, Cristina K. aprovou no Congresso a intervenção estatal no mercado do insumo. Pôs de uma vez o laço no pescoço dos dois grupos e passou a atuar também na administração da empresa.
Agora, vem a decretação da constitucionalidade da Lei de Meios, contra a qual o Clarín lutou em instâncias inferiores da Justiça durante quatro anos. A lei é um instrumento inspirado no bolivarianismo chavista, construído sob o disfarce de uma ferramenta para estimular a “diversidade” e a “liberdade de expressão” nos meios de comunicação”, mas cujo objetivo real é acabar com a independência do jornalismo profissional, fazê-lo refém do poder público.
Na questão central da constitucionalidade da lei que determina o desmembramento do grupo pela venda de concessões de TV por assinatura e rádio, e sua entrada imediata em vigor, o Clarín perdeu a disputa por quatro votos a três, na Corte Suprema de Justiça, presidida por Ricardo Lorenzetti, nomeado por Néstor. Na televisão por assinatura — na Argentina, mais forte que a aberta, ao contrário do Brasil — o Clarín detém 42% do mercado, e terá de encolher a fatia para 35%. Quanto ao meio rádio, falta definir na prática o que acontecerá.
De alguns votos dos juízes constaram advertências sobre a transparência na distribuição de verbas públicas de publicidade, o uso político dos meios e a necessidade de aplicação técnica da lei. Não se espera que surtam efeito.
A derrota do jornalismo profissional é dupla: perde espaço e, como acontece há algum tempo na Argentina, o vácuo é preenchido por empresários ligados à Casa Rosada. Eles deverão ser os compradores das concessões a serem compulsoriamente vendidas pelo Clarín.
Chega a ser paradoxal: o governo K. obtém esta vitória no momento em que o kirchnerismo, com apenas 30% dos votos obtidos nas eleições parlamentares, é castigado pelos eleitores e se depara com riscos concretos de sair da Casa Rosada em 2015. A decisão da Corte Suprema prenuncia dois anos ainda mais difíceis para a sociedade argentina.
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