O GLOBO - 31/10
Tenho discutido muito desde que os beagles viraram manchete. Acredito que a mudança de paradigmas só se faz com alarde e pressão social
Nunca li tanto sobre o uso de animais em testes de laboratório, contra ou a favor, quanto na última semana. Pudera não. O assunto provoca paixões violentas nos dois lados. A internet ferveu e, compreensivelmente, não houve publicação que não abordasse a questão depois da invasão do biotério Royal. Por polêmica que tenha sido, ela teve o mérito indiscutível de trazer à ordem do dia um tema da maior importância que muitas pessoas, físicas e jurídicas, não estavam interessadas em discutir. Ou, melhor dizendo, estavam interessadas em não discutir.
Ainda assim, apesar da quantidade de artigos, posts, comentários, links e argumentos, não vi um só caso em que alguém tivesse conseguido convencer um antagonista a mudar de opinião, mesmo nos raros casos em que o debate foi conduzido com inteligência e educação. A relação entre humanos e animais esbarra em sentimentos tão complexos que, ao longo dessa semana, muitas vezes tive a sensação de estar conversando com gente de outro planeta — ou, no mínimo, de outra espécie.
Um dos meus amigos mais queridos, por exemplo, médico sensível e educado, chega a lamentar que as crianças de hoje não possam mais abrir rãs vivas, como ele fazia na escola, para aprender “como funcionam”. Quando observo que isso é imoral, ele me compreende tão pouco quanto eu o compreendo quando ele me diz que, ao contrário, é educativo e necessário. É evidente que, no caso, rodamos sistemas operacionais diferentes, incapazes de se comunicar.
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Tenho discutido muito desde que os beagles viraram manchete. Acredito que a mudança de paradigmas só se faz com alarde e pressão social. O sistema é acomodado por excelência. É preciso sacudi-lo, insistir, chamar a atenção.
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— Eu vou usar não um argumento mas uma reflexão — propôs Luciano Barbosa na minha página do Facebook. — Imagina que um medicamento para a cura do mal de Parkinson esteja sendo feito nesse momento. E sua mãe ou seu pai sofram desse mal terrível. Aí sai na imprensa que a última etapa antes de liberar o remédio para uso público é a de testes em animais. Você pediria para que essas pesquisas não fossem feitas? Defenderia a espera para testes em outros modelos, prolongando o sofrimento dos seus parentes? Sempre que faço essa pergunta recebo ataques raivosos... Só não recebo respostas.
— A questão que você apresenta é complicada, porque parte de uma série de subjuntivos e exige outros tantos como consideração — respondi. — Além disso, ela propõe uma troca que não deixa margens a dúvidas — a vida dos meus pais ou a vida dos animais de laboratório — em cima de uma suposição: “imagina que um medicamento...” etc. etc. etc.
O que você propõe, no fundo, pode-se resumir a uma pergunta mais simples: você ama mais os seus pais ou os animais? Ora, como eu tive a sorte extraordinária de ter pais admiráveis, e tenho a felicidade de ainda ter a minha Mãezinha a meu lado, a minha resposta é óbvia; mas cuidado! Dependendo da família de cada um, você pode mesmo ouvir respostas surpreendentes.
Em suma, o que eu quero dizer é que você personaliza o argumento clássico dos pesquisadores, que em tese matam animais para salvar humanos, mas parte do mesmo vício original deste argumento, o de que o teste em animais é a única saída de que dispomos para o avanço da ciência.
O que eu questiono, e o que tantas outras pessoas — de boas ou más famílias! — também questionam, é, justamente, a necessidade desses testes: “a última etapa antes de liberar o remédio para uso público é a de testes em animais”. Mas será isso mesmo?
A maioria das defesas de uso de animais em laboratórios que tenho lido e ouvido me passa uma sensação de... comodismo, é isso. Faz-se assim porque sempre se fez assim. Faz-se assim porque, quando alguma coisa der errado (e em geral sempre dá) todos, laboratórios e pesquisadores, poderão dizer que aquela droga maravilhosa, como o Vioxx, digamos, foi exaustivamente testada em animais.
Será que já não está na hora de irmos para o próximo capítulo?
De qualquer forma, tenho uma resposta objetiva para você, que tira o elemento emocional (os meus Pais) da jogada: se eu estivesse com Parkinson, e essa decisão estivesse ao meu alcance, não deixaria testar nada em animais. Mandaria testar em mim mesma. Isso responde à sua pergunta?
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Já um defensor do biotério passou três dias perguntando a mim e a outras pessoas se dávamos atum para os nossos gatos. A provocação implícita dessa pergunta é clara, e vai pela mesma linha dos que acham que qualquer um que se manifeste contra testes em animais e coma carne é incoerente — e, portanto, não tem direito de se manifestar. Cansei. E dei uma patada:
— Meus gatos comem atum sim. Eu como atum. Hoje mesmo abri duas latas para eles. A vida é muito mais complexa do que aquilo a que você quer reduzi-la com esse simplismo de botequim. Estamos cercados de crueldade por todos os lados, da roupa que compramos e que é feita por pessoas que trabalham em regime de semiescravidão à tecnologia que usamos; quem acredita que isso pode mudar, e eu acredito, briga onde pode, quando pode, e vai mudando um pouquinho aqui e outro ali. A alternativa 100% coerente que você quer só tem uma saída: suicídio coletivo.
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