GAZETA DO POVO - PR- 27/10
Hoje, eles querem que só possam ser publicadas biografias autorizadas, em nome da privacidade de pessoas que se tornaram públicas. Amanhã, vão querer que entrevistas de outros, em que eles sejam mencionados, também tenham de ter autorização. Depois, vão querer que notícias sobre eles também sejam autorizadas, pois, afinal, também ofenderiam sua privacidade...
Engraçado é que, na maioria, são compositores os famosos do movimento Procure Saber (melhor seria se chamar “Procuramos Esconder”). Seguindo a regra que eles querem para os escritores, quando fizerem música sobre alguém, a pessoa ou seus herdeiros também deveriam ter o direito de autorizar ou embargar, não?
Na verdade, aconteceu que, após década embargada, a biografia de Garrincha, escrita por Ruy Castro, foi liberada depois de acordo com as herdeiras, quando elas finalmente perceberam que pediam uma fortuna e livros não rendem fortunas, como ganham Caetano, Gil, Chico e outros “escondedores”. O acordo feito com as filhas de Garrincha assanhou os herdeiros em geral, que passaram a ver o “mapa da mina”: autorizar só mediante pagamento ou embargar e depois negociar pagamento, ou embargar sob qualquer pretexto, para ficar no mercado só a biografia chapa-branca... E o Brasil caminhou para ser o país das memórias inibidas, democracia híbrida, com a Constituição garantindo liberdade de expressão e o Código Civil desgarantindo.
Certo está Joaquim Barbosa: biografias devem ser todas permitidas e, se biografado ou herdeiros se sentirem prejudicados, acionem a Justiça. Melhor seria se nossa Justiça já não fosse injusta pela própria lerdeza. Pior, porém, sempre será tolher a liberdade em nome de duvidosas privacidades.
Frank Sinatra, estelar exemplo, tem dúzia de biografias; Mick Jagger, meia dúzia – todas não autorizadas. E todas contribuem, de alguma forma, para a construção de seus mitos, com suas virtudes e defeitos. Se eu fosse escrever só sobre as virtudes de Leminski, estaria antes de tudo traindo Leminski, aquele sujeito que não tinha vergonha de falar alto e tinha orgulho de seu sotaque provinciano, vivia pobremente porque optou pela missão artística, bebia com intensa urgência e morreu vomitando sangue, embora jamais reclamando ou pedindo piedade; um estoico, como ressalto em meu livro – aliás, nosso livro, foi escrito em parceria espiritual. Um Leminski certinho seria ficção.
Lúcia Flecha de Lima diz que gosta só de uma das várias biografias de sua amiga Lady Di, sem querer proibir as outras, assim demonstrando que, como os escritores têm liberdade de expressão nas democracias, o mercado tem liberdade de escolha.
Quem se alinha com o movimento Procure Saber está, em nome da privacidade de famosos, barrando trabalho de escritores, promovendo picaretagem de herdeiros e privando o público de conhecimento pleno, a chamada transparência tão reclamada para os serviços públicos – e por que não também para as pessoas que se tornaram tão públicas a ponto de merecer biografias? Se a vida delas tem ruindades que não se quer revelar, ora, as ruindades são delas tanto quanto as bondades, não?
Ou o Supremo faz a Constituição ser respeitada e o Código Civil ser alterado, ou as biografias chapa-branca serão cerejas do bolo de uma democracia hipócrita.
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