O GLOBO - 27/10
Querer reprimir a liberdade de expressão em nome da preservação do direito à privacidade é dar um tiro no pé
O bebê de Salomão
A liberdade é uma só e não pode ser retalhada como o bebê de Salomão, aquele que quase foi repartido a golpe de espada entre as duas mulheres que reivindicavam sua maternidade. Estou ao lado dos que se opõem ao artigo do código civil que prevê para biografias a autorização prévia do biografado. A modificação da legislação no sentido de permitir que biografias sejam publicadas sem necessidade de autorizações é inevitável e natural numa democracia que se aperfeiçoa, e a intenção de suprimi-la não causaria celeuma caso o grupo de artistas que forma o movimento Procure Saber não tivesse se manifestado por sua permanência no código civil.
Édipo
A admiração, o respeito e a gratidão que sinto por Roberto, Erasmo, Djavan, Mautner, Chico, Caetano e Gil são incondicionais. Atribuo a eles grande parte da construção da minha visão de mundo, e pesa-me discordar publicamente de suas posições. O que gera discussão é ver aferrados a uma postura conservadora artistas historicamente comprometidos contra a censura e que sempre se pautaram pelas liberdades e ousadias estéticas e comportamentais. O que não justifica sua vilificação por parte da imprensa, tachando-os — de forma desrespeitosa e ressentida — de “censores” intolerantes. Não se pode resumir uma questão relevante a uma simples queda de braço entre celebridades e jornalistas. Não se trata de uma picuinha. Atentemos para não perder o foco do que está em jogo.
Controle absoluto
O ponto central da discussão é a contraposição entre liberdade de expressão e direito à privacidade. Embora reconheça pontos plausíveis na argumentação do Procure Saber, não concordo que para preservar o direito à privacidade seja admissível relativizar ou cercear a liberdade de expressão. Em democracias mais aprimoradas, liberdade de expressão e direito à privacidade caminham juntos, ao passo que, em regimes intolerantes e totalitários, quanto mais se reprime a liberdade de expressão, mais se restringe o direito à privacidade. Querer reprimir a liberdade de expressão em nome da preservação do direito à privacidade é dar um tiro no pé. O controle absoluto da própria história não ocorre numa sociedade livre e democrática. Controle absoluto, só em regimes totalitários, e sempre como primazia do Estado e não dos indivíduos.
Referendo
Em 2005 justifiquei a um amigo meu voto a favor da comercialização de armas de fogo no Brasil: “A liberdade é uma só.” O amigo não se conformava com o fato de um adepto dos princípios da não violência de Gandhi e não afeito a armas de fogo votar a favor de sua comercialização. Segui com minha justificativa: “Quero viver num país livre em que as pessoas tenham liberdade para fazer, dizer e comprar o que bem entenderem.”
É preciso saber viver
Na minha concepção utópica seriam legalizados drogas, aborto e a eutanásia. Voto e serviço militar deixariam de ser obrigatórios. No meu Brasil idealizado, caberia ao Estado, em vez de punir e reprimir, amparar, informar e regular práticas de direito individual e uso e comercialização de substâncias tóxicas dentro das medidas do bom senso e da lei, como já ocorre com tabaco, álcool e algumas formas permitidas de interrupção de gravidez e morte assistida — desligamento de aparelhos em caso de morte cerebral, por exemplo.
Liberdade exige coragem. Numa sociedade livre algum desapego é recomendável, assim como doses cavalares de tolerância.
“Fahrenheit 451”
No romance “Fahrenheit 451”, Ray Bradbury nos apresenta um futuro sombrio em que livros e pensamento crítico estão banidos da sociedade, num mundo em que opiniões próprias são consideradas antissociais. Entre 10 de maio e 21 de junho de 1933, logo depois da chegada de Hitler ao poder, nazistas organizaram em várias cidades alemãs grandes e festivas queimas de livros. Entre os autores “incinerados” estavam Thomas Mann, Walter Benjamin, Brecht, Musil, Freud, Einstein e Marx. O evento é reconhecido como um dos mais cruéis atentados à liberdade de expressão da História. Livros — mesmo os ruins — simbolizam liberdade de pensamento. Reprimir ou condicionar sua publicação soa como uma ameaça a um princípio fundamental da democracia.
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