O Estado de S.Paulo - 27/10
Dissidências são um problema para quem está no poder. Exemplos disso não faltam. O fim do reinado de 70 anos do Partido Revolucionário Institucional (PRI), no México, iniciou-se quando uma dissidência à esquerda lançou candidato próprio nas eleições presidenciais de 1988. Os sucessivos governos da Concertación, no Chile, entre 1990 e 2009, interromperam-se por igual razão. Aqui, no Brasil, o governo de Fernando Henrique Cardoso começou a perder a sucessão quando se rompeu a aliança entre PMDB, PFL e PSDB, em 2001.
Ainda é cedo para prever os reflexos eleitorais da aliança entre Eduardo Campos e Marina Silva. Mas já é possível dizer que se abriu uma dissidência que ameaça a reeleição de Dilma Rousseff. Não se trata de um evento menor. Campos e Marina são as duas novas lideranças políticas mais expressivas do bloco de forças que se reuniu em torno da candidatura do ex-presidente Lula em 2002 e 2006.
Não será simples combinar a "sustentabilidade" de Marina com o "desenvolvimentismo" de Campos, tampouco o "utopismo" dela com o "pragmatismo" dele. Não estamos diante, porém, de uma dupla de amadores. Quem supunha que Marina se enquadrava nessa categoria mudou de ideia depois da ousadia da aliança com o governador de Pernambuco. Foi um lance de mestre não apenas porque surpreendeu a todos, mas principalmente porque definiu um claro objetivo estratégico: pôr um ponto final na já longa permanência do PT no poder. Depois de sentir na carne a mão pesada do governo, pelas dificuldades criadas para o registro de seu partido, ela concluiu, como há muito já o fez a oposição, que a penetração do PT no Estado brasileiro alcançou um estágio perigoso para a vida democrática do País. "Mais quatro anos, não" - essa já era a mensagem implícita da candidatura de Campos. Coube a Marina, entretanto, pronunciá-la em alto e bom som político.
A ex-senadora empresta à aliança a legitimidade das "jornadas de junho". Campos oferece a perspectiva de transformar a aliança na base de um governo viável, com apoio e interlocução mais amplos do que Marina poderia obter. Seria relativamente fácil para o governo neutralizar ambos isoladamente. Contra a ex-senadora pesaria o argumento de que o Brasil é um país complexo demais para ser governado por uma força incipiente, sem base parlamentar e quadros experimentados, à margem das correntes principais da política brasileira. Já a candidatura do governador se encontrava no divã político do ser ou não ser de oposição e ante a dificuldade de converter a alta popularidade em Pernambuco em maior intenção de votos no âmbito nacional. Juntos, Marina e Campos representam um desafio muito mais complicado para o governo.
Pela primeira vez desde que o PT ascendeu ao poder existe a possibilidade real de uma frente de oposições capaz de mobilizar as diversas insatisfações contra o governo e organizá-las em torno do objetivo de encerrar o ciclo político aberto em 2002. Partido mais bem estruturado da oposição, o PSDB vem com candidato novo para as eleições de 2014. O estilo agregador de Aécio Neves facilita em muito a formação dessa frente de oposições, seja quem vier a encabeçá-la num provável segundo turno. É sintomática a forma leve e amistosa como o senador reagiu à notícia da surpreendente aliança entre Campos e Marina, mesmo sabendo dos desafios que o fato novo coloca para a sua candidatura. Prova de inteligência política de quem confia em suas boas credenciais como ex-governador de Minas e tem o respaldo de seu partido.
A possibilidade de derrota do governo alargou-se no horizonte. Dilma tem a maioria dos partidos, o que lhe dará mais tempo na televisão, mas é uma maioria com cara velha. E que envelhece a olhos vistos à medida que se intensifica a disputa por cargos e verbas dentro do condomínio governista. Grande parte da energia do governo é consumida em reuniões políticas para fazer e refazer o quebra-cabeças das alianças eleitorais e do loteamento do Estado. Outra parte é destinada a medidas e anúncios que visam a dividendos eleitorais, atividade que se tornou frenética, com ajuda do twitter presidencial. O que sobra é dedicado à tentativa de reconquistar a confiança perdida com os insucessos do "novo paradigma de política econômica" e do "novo modelo de desenvolvimento". Como a tentativa é atrapalhada e os ventos externos não a favorecem, o governo terá um balanço modesto a apresentar em 2014. E dificuldade para convencer que, sob a mesma administração, dias melhores virão nos quatro anos seguintes.
O eventual encerramento do atual ciclo de poder desobstruirá canais para a renovação da vida democrática brasileira. O PT tornou-se uma força conservadora. A lógica férrea da manutenção do poder freia o debate interno ao partido e limita as possibilidades de consolidação de novas forças no campo da centro-esquerda. A dissidência de Marina e Campos é uma resposta a esse cerceamento ativo. De igual forma, a denegação da gravidade específica do "mensalão" é sintoma de esclerose dentro do partido, embora a disciplinada ausência de crítica pareça sinal de força. A mesma lógica férrea da manutenção do poder estimula deliberadamente o auxílio à criação e proliferação de legendas de aluguel, a deterioração da política e das instituições do Estado e o amesquinhamento do debate público.
O possível retorno do PT à planície refletirá a formação de uma maioria em favor de fronteiras de separação mais nítidas entre Estado e governo, entre governo e partido, entre governo, partido e sociedade civil. No Brasil consolidamos algumas conquistas: democracia eleitoral, estabilidade, prioridade à inclusão social. Falta-nos uma República em que o Estado esteja a serviço da coisa pública e o fortalecimento da cidadania, definida como exercício efetivo de direitos e obrigações iguais para todos, seja a razão de ser da vida política. É um logo processo, sem um ponto fixo de chegada. Nesta etapa, avançar nessa construção requer a quebra da hegemonia do PT na política nacional.
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