O GLOBO - 17/10
Não dá para explicar o que é o Círio de Nazaré; não dá para se ter ideia do que é aquela quantidade compacta de gente, numa festa de paz
Ouço falar no Círio de Nazaré há muitas e muitas luas. Não pela mídia, mas pela fonte mais privilegiada no que lhe diz respeito, minha amiga Fafá de Belém, que vive, como ninguém, a maior festa religiosa da Amazônia. Há anos ela me diz que o Círio é algo que se tem que ver pessoalmente, que filmes e fotos não conseguem transmitir o que acontece no Pará quando todo mundo vai para a rua ao mesmo tempo, homenagear a sua santa padroeira. Pois este ano aceitei o desafio, e fui lá, conferir a grande romaria.
Fafá está certa. Não dá para explicar o que é o Círio de Nazaré; não dá para se ter ideia do que é aquela quantidade compacta de gente junta, numa festa de paz. Acomodada na varanda de uma casa antiga, eu olhava para a multidão que passava e não conseguia ver uma fresta entre os corpos. Às vezes havia um empurra-empurra, às vezes pessoas caíam desmaiadas e eram socorridas por padioleiros que iam e vinham afobados, cercados por gente encarregada de abrir caminho.
A primeira impressão — e a segunda, e a terceira — é de pânico. No sábado à noite, a procissão reuniu quase dois milhões de fiéis; no domingo pela manhã, foram cem mil a mais. Uma multidão dessas, num calor daqueles, está sempre a um passo da calamidade. Se alguma coisa der errado, dará muito errado — não há para onde correr. Não há Plano B.
Felizmente, ano após ano, entra Círio, sai Círio, nada dá muito errado. Como no nosso Réveillon, a energia geral é positiva, com a diferença de que ninguém vai ao Círio para beber. Cada uma daquelas pessoas está lá movida por um bom sentimento, pedindo alguma coisa, agradecendo uma graça alcançada, vivendo a sua fé.
É um mar de brasileirinhos que ainda não perdeu a esperança.
Puxando a famosa corda vem uma garotada implorando para passar no vestibular, ou agradecendo por ter passado. Aqui e ali se vê alguém trazendo o pequeno modelo de uma casa, um carro, um barco, uma lojinha. Há ex-votos clássicos também: braços, pernas, cabeças. E velas. Muitas velas.
Não sou uma pessoa religiosa. Não me impressiono com multidões. Mas tive vontade de abraçar cada uma daquelas pessoas que seguiam a santa com uma oferenda na cabeça, puxar para o canto e pedir que me contassem a sua história.
O Círio de Nazaré é uma antologia de lutas, trabalho, conquistas, alegrias e sofrimento.
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Fafá, que caiu no caldeirão de poção mágica quando era criancinha, é a grande animadora da festa. Sua varanda é o ponto alto da procissão, o epicentro de um engarrafamento de fiéis que ela dispersa entre uma música e outra: “Vamos andando, gente! A santa tem hora!” Suas canções embalam o cortejo noturno até a passagem do último peregrino e, poucas horas depois, animam o da manhã. Isso sem falar que, na sexta à noite, ela fez show com Teresa Salgueiro, Wagner Tiso e Márcio Mallard até tarde e, já no sábado, aos primeiros raios do sol, foi para o rio, participar da romaria fluvial. Ufa.
Já vi muitos shows da Fafá em teatros e espaços abertos, mas nada que se compare à sua atuação durante o Círio, o encontro perfeito entre uma artista e seu público. Os fiéis adoram Fafá, mas curiosamente não há distância entre eles: o que se percebe nas pessoas que passam encantadas diante da varanda é um misto de intimidade e de orgulho, como se alguém da família tivesse ido para o mundo e voltado em triunfo. E, no fundo, é disso mesmo que se trata.
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Sinal dos tempos: foi desenvolvido pela organização da festa um ótimo aplicativo sobre o Círio de Nazaré, que contemplou todas as plataformas de smartphones. Traz informações úteis, telefones de emergência, notícias, a história do Círio, orações e músicas. Seu ponto alto, porém, foi a localização da santa em tempo real, durante o trajeto, feita por GPS, através de um módulo chamado “KD a berlinda?”. Berlinda, fiquei sabendo, é aquela caixa de vidro na qual se transportam as imagens religiosas.
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Quanto mais a gente viaja por aí, mais se aflige com o que espera os incautos turistas que vêm à Copa. No aeroporto de Belém um ímã de geladeira dos mais feios sai a R$ 13. Não sei a quanto saem os bonitos porque não se encontram. Uma camiseta básica custa R$ 60.
O Pará tem um dos artesanatos mais ricos do Brasil. Tem cerâmica marajoara, que quando é bonita é muito bonita, tem cuias pintadas, tem palha, tem brinquedos encantadores feitos de miriti, tem bijuterias de sementes e penas coloridas, tem esculturas de madeira e o que mais se possa imaginar.
Fui a Belém num pé, voltei no outro, e supus que, no aeroporto, poderia encontrar algum desses tesouros. O que as lojas oferecem, porém, é triste, caro e importado. Não havia um só barquinho de miriti à venda.
Aqui no Rio, no Pão de Açúcar, onde por acaso estive no começo da semana, umas bonequinhas de pano de Carmem Miranda custam nada menos do que R$ 180. As lojas nas quais são vendidas, aliás, têm um repertório de lembrancinhas paupérrimo, e uma atitude ainda pior: os turistas não podem fotografar em seu interior, mania antipática que, no resto do mundo, já saiu de moda até nos museus.
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