O Estado de S.Paulo - 02/09
Atualmente, mudanças tecnológicas, comportamentos e hábitos, preferências, maneiras de agir e de pensar sofrem constantes e rápidas mutações e nos deixam perplexos, em especial quanto às razões que as impelem. Mas medidas governamentais adotadas de inopino, sem prévia consulta ou preparação, por seu caráter autoritário, distante dos segmentos interessados, desprovidas de necessidade e de bom senso, são as que mais geram insegurança social e instabilidade à própria democracia representativa.
O governo federal está trazendo 4 mil médicos cubanos para participarem de um programa de assistência às regiões mais distantes e carentes do País. Claro que os médicos brasileiros têm condições e capacidade de sobejo para cumprir um papel social que extrapola os limites de seus consultórios. Especialmente, creio eu, os jovens estariam propensos a socorrer os brasileiros dos mais longínquos rincões, procurando suprir suas carências de saúde. Aliás, diga-se que os anseios da classe médica coincidem com as aspirações do povo em matéria de saúde. O médico brasileiro quer dar ao povo a saúde que lhe é devida.
Sabemos, no entanto, que não depende exclusivamente dele o cumprimento desse mister. Se ao médico são reservados o aperfeiçoamento científico da medicina, a excelência no atendimento pessoal, o esmero, a diligência e a perícia nos procedimentos adotados, ao Estado cumpre gerenciar a atividade pública da medicina, planejando, dotando-a de recursos, criando mais unidades médicas, fornecendo condições para que a malha de saúde se espraie para todo o território nacional, procurando diminuir a graus mínimos as vergonhosas carências no setor.
Pois bem, o reconhecimento da excelência da nossa medicina não é fruto de um nacionalismo piegas e irreal. Ao contrário, é a medicina mundial que nos rende homenagens. Os avanços da nossa ciência médica servem de paradigma em vários setores e são reconhecidos mundialmente. Quantos e quantos brasileiros, influenciados pelo vício nacional da baixa estima, ou, como diria Nelson Rodrigues, por nosso complexo de vira-latas, vão curar seus males em outros países e de lá são mandados de volta, pois dizem os médicos estrangeiros que a cura está no Brasil, e não em seus próprios países...
Sem fazer nenhuma distinção entre medicina pública e privada, com essa inusitada medida de importar médicos de Cuba, o governo está passando a falsa ideia ao mundo de ser a nossa medicina precária, estagnada no tempo, desprovida de pioneirismo e avanços científicos em vários setores. E mais, o profissional brasileiro poderá ser tido como desprovido de sensibilidade social, humanismo e solidariedade, que compõem a essência do juramento de Hipócrates.
É verdade que há alguma resistência dos nossos médicos, aliás, compreensível, a trabalhar nos locais mais ermos e desprovidos do nosso colossal território. Mas não é menos verdade que historicamente os governos jamais se importaram, obviamente incluído o atual, em criar condições favoráveis para que houvesse distribuição de saúde às classes desvalidas, não só dos locais distantes, como também das periferias urbanas.
É desnecessário desfilar o rol de atrozes sofrimentos infligidos aos pobres. Desídia e pouco-caso dos governos, no nível dos municípios, dos Estados e da União. Falta de sensibilidade, humanismo e vontade política. Desvio de verbas para setores de menor relevância. Corrupção. Má gestão. A situação da saúde dos brasileiros da periferia e dos grotões constitui uma vergonhosa tragédia nacional.
A culpa é dos nossos médicos? Não, faltam-lhes condições para atuar. A culpa é do poder público. Não se esqueçam as inúmeras ações de médicos que, descolados do Estado, agem apoiados por ações voluntárias de empresas e de ONGs, num trabalho verdadeiramente sacerdotal.
É de indagar se aos médicos cubanos foram expostas as precárias condições de trabalho que encontrarão. Além do mais, estarão eles preparados tecnicamente? Passarão por alguma avaliação que os habilitará a clinicar nas condições que vão encontrar?
Que a lei brasileira será burlada nós sabemos, pois seus diplomas não serão revalidados. A pergunta que se impõe é: qual o fato que está subjacente à estranha, inexplicável e inconveniente vinda dos médicos cubanos? Será porque eles são mais capacitados que os nossos? Ou a resposta se situa no campo político-ideológico? Nesse sentido, o Brasil estaria dando guarida a profissionais carentes de trabalho em seus países? Ainda há que indagar: uma vez que o País pagará bem mais do que os médicos receberão, qual a razão dessa ajuda financeira a Cuba?
Poder-se-á perguntar a razão de estar um advogado opinando sobre assunto alheio à sua especialidade. Respondo: nós, advogados, temos uma invencível incompatibilidade com situações injustas e ilegais e uma irresistível tendência a nos indignarmos em face delas. Assim, passamos a defender e a perseguir o que nos parece ser o justo.
Nos primórdios da humanidade, antes mesmo de a sociedade e o Estado se organizarem, nós éramos os vozeiros ou boqueiros. Emprestávamos a nossa voz e a nossa boca àqueles que, oprimidos, não tinham voz nem vez. Este é o nosso sagrado mister: falar, postular, ser a vez e voz de outrem.
Claro que os médicos brasileiros sabem defender os seus direitos com competência e coragem. E é o que estão fazendo. No entanto, premidos por nossa vocação e pela solidariedade a eles, nós, advogados, deveremos verberar mais essa conduta, no mínimo, esdrúxula do governo. Não esqueçamos, amanhã o mesmo poderá ocorrer conosco, com os engenheiros, economistas, etc., etc. E, de repente, será decretada a incompetência dos profissionais brasileiros, para gáudio de cubanos, venezuelanos, bolivianos e outros alinhados.
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